Como fabricar um Leviatã com um tweet e um telejornal

A unidade do Leviatã é uma ficção que precisa ser fabricada continuamente. A Internet, em sua fase inicial, ampliou a possibilidade do dissenso e da agência política distribuída sem a necessidade de grandes estruturas ou de um horizonte de totalidades constituídas. Porém, em poucos anos, grande parte da internet foi colonizada para funcionar sobre o domínio de grandes corporações com alto poder de centralização e controle.

O mais grave, no entanto, é a combinação das redes digitais com a comunicação de massa altamente centralizada nas mãos de poucas empresas. Um excelente exemplo deste pior cenário é o efeito provocado pela leitura de um tweet do comandante do exército pelo Jornal Nacional da Rede Globo na véspera do julgamento do STJ.

Neste instante, podemos ver em operação todo o teatro de fabricação de um mundo pretensamente coerente e unitário, que coincida com a posição defendida pela Globo. Graças à transmissão homogênea em escala nacional de uma opinião pessoal, certificada duplamente pela vínculo institucional do indivíduo-general e do jornalista-televisivo, a opinião pessoal de um general transforma-se em potencial de ação coordenada de toda uma instituição (exército) supostamente alinhada com a posição da Globo. Com um tweet e mais um telejornal atualiza-se o fantasma do golpe militar e fabrica-se um Leviatã.

Sabemos, porém, que entre os militares há posições muito distintas, e a elite que disputa o espólio do golpe contra a Dilma, está travando uma batalha interna feroz. A unidade apresentada pela Globo é sua ficção com potencial efeito de realidade sobre sua audiência. Não há vontade única do Povo, só há vontade única (dos proprietários) da Rede Globo.

Na manha seguinte, em editorial, a Globo apressa-se a emitir uma opinião diferente. É fácil saber que ela não mudou de idéia com relação à noite anterior. Os editores sabem que o importante são os afetos que se produzem a cada enunciação. Ela sabe que a mensagem fundamental – ao utilizar os militares para chantagear o STJ – já foi enviada.

ps: essa imagem em destaque foi produzida pelo colega Andre Mesquita para a capa da minha tese de doutorado, defendida em 2009 (quase 10 anos atrás). Ela segue disponível neste link: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/251771

4 comentários

  1. polart disse:

    Post do professor Ricardo Teixeira (originalmente publicado no FB: https://www.facebook.com/ricardo.r.teixeira/posts/1621492477934142

    REFLEXÕES TÁTICAS

    Quando uma “mídia golpista” mobiliza todas as forças políticas do país, organizadas em torcidas, para concentrar suas atenções num julgamento eminentemente político, contra todas as suas intenções, ela acaba contribuindo enormemente para por a nu os mecanismos do golpe. Não “deste golpe”! Mas do golpe permanente. Do Estado de exceção que se confirma como regra.

    O espetáculo midiático do pisoteamento da Constituição praticado ontem pelos supremos guardiões do poder soberano não deixa de ser também um ato dramático da sua Destituição. Há uma “pedagogia da insurreição” nessa tragédia, que põe a nu como se exerce e em nome de quem tem sido exercido esse poder. Não podemos subestimar as vantagens táticas desse escancaramento publicitário de que não estamos em luta contra uma “metaforça”, mas contra uma “associação de malfeitores” entre outras (aquela que momentaneamente venceu as demais) cuja arbitrariedade e ilegitimidade se tornou transparente…

    ¨Para destituir o poder não basta vencê-lo na rua, desmantelar seus aparelhos, incendiar seus símbolos. Destituir o poder é privá-lo de seu fundamento. É isso o que justamente uma insurreição faz. Aí, o constituído surge tal qual é, nas suas mil manobras desajeitadas ou eficazes, grosseiras ou sofisticadas. ¨O rei está nu¨, é dito então, porque o véu constituinte está em farrapos e toda a gente pode ver através dele. Destituir o poder é privá-lo de legitimidade, é conduzi-lo a assumir sua arbitrariedade, a revelar sua dimensão contingente. É mostrar que ele não detém mais do que a própria situação, sobre a qual desdobra estratagemas, procedimentos, combinações – é dar início a uma configuração passageira das coisas que, como tantas outras, apenas a luta e a astúcia farão sobreviver. É forçar o governo a descer para o nível dos insurgentes, que não serão mais ¨monstros¨, ¨criminosos¨ ou ¨terroristas¨, mas simplesmente inimigos. Encurralar a polícia reduzindo-a a uma mera gangue, a justiça a uma associação de malfeitores. Na insurreição, o poder vigente é mais uma força entre outras sobre um plano de luta comum, e não mais essa metaforça que rege, ordena ou condena todas as potências. Todos os canalhas têm um endereço. Destituir o poder é mandá-lo por terra.¨

    Comitê Invisível –
    Aos nossos amigos – Crise e Insurreição

    1. polart disse:

      Ricardo, [05.04.18 19:52]

      O meu comentário “tático” dialoga com seu texto sobre “o Leviatã e a Rede, enquanto uma “ficção que precisa ser fabricada continuamente”. O que eu, de uma certa forma, quis dizer (e dialoga totalmente com sua ideia de fabricação midiática do Leviatã) é que a Globo, ao fazê-lo, ao por em “operação todo o teatro de fabricação de um mundo pretensamente coerente e unitário”, contra todas as suas intenções, acaba contribuindo para pôr a nu este Leviatã. Mais que nu, ao fabricar este corpo unitário, colocá-lo sob os holofotes do espetáculo e convocar a atenção das massas para a sua trama dramática, ela expõe suas entranhas e sua fisiologia. O “véu” é aquele em que se projeta a imagem de um “autômato” movido pela vontade única do Povo e que, quando excessivamente exposto, desvela-se um verdadeiro “mechanical turk”, um falso “autômato” movido, de fato, pela vontade de determinados grupos, gangues, associações de malfeitores…
      O meu comentário, dirigido a uma parte da esquerda, é de deveríamos saber explorar melhor, taticamente, essa fragilidade das táticas do inimigo. Até porque este véu existe para uma boa parte da esquerda, que acredita no Leviatã e acha que bastaria que ele, de fato, estivesse sob a vontade única do Povo, que ela acredita representar. Mas essa já é outra questão…

  2. polart disse:

    Henrique, [05.04.18 16:36]
    [In reply to Ricardo]

    Sim, entendi Ricardo. Além de explorar essas rachaduras do sistema e todo seu teatro da representação do poder, desejo potencializar (e criar) nossas tecnologias de produção do comum. Como no seu texto que cita o Comitê Invisível: há o momento insurrecional em que bloqueamos os mecanismos de funcionamento do poder. Mas além de bloqueá-lo, nossas tecnologias (organizacionais, práticas, simbólicas, materiais etc) devem ser capazes de produzir e sustentar um outro mundo. Já não é suficiente a revolta (ela é necessária), mas penso muito no “dia-seguinte”, na reprodução do cotidiano, no “seguir a vida” de outra maneira. Por isso a questão do cuidados, do feminino, da nossa economia, das nossas infraestruturas, tudo isso tem que ser fabricado. Aprender a ser arquitetx, engenheirx, médicx, cozinheirx, cuidadorx….Na realidade, isso já está acontecendo em toda parte…quero olhar mais pra isso. Aprender a fazer junto e tecer redes entre esses pedaços.

  3. polart disse:

    Ricardo, [05.04.18 18:40]
    [In reply to Henrique]

    Tamu juntíssimo nessa! Tecnopolítica na veia…
    Aliás, foi um pouco nisso que eu pensei ontem à noite, lendo o intenso debate que rolou ao longo do dia por aqui. Se há uma dimensão em que eu acho que a esquerda vem sendo realmente derrotada é nessa que você chamou de “reprodução do cotidiano”. Há muitas pessoas falando de diferentes jeitos sobre isso…
    Gosto quando o Franco Berardi diz que a sensibilidade é um campo de batalha político. A meu ver, é sobretudo nesse campo de batalha que estamos levando uma surra homérica! (Sem ignorar, é claro, o que você diz e eu concordo plenamente sobre experimentações de outros modos de vida e outras “sensibilidades”, que forjam novas perspectivas para as lutas de esquerda)
    Se olharmos nessa perspectiva, o debate de ontem sobre as relações entre (neo)liberalismo e fascismo ganham outra inteigibilidade. Na minha visão, é numa dimensão micropolítica, subjetiva, das “sensibilidades” – como se preferir falar -, ou ainda, das formas de “reprodução do cotidiano” que neoliberalismo e fascismo se avizinham. O neoliberalismo como modo de vida (que nem toda esquerda combate ou nem mesmo percebe como problema) que possui afinidades eletivas como um modo de vida fascista…
    De novo, fico por aqui, pois tendo a me estender…
    Só pra dar um pitaco no debate de ontem, fazendo a conexão com a importância que dou a estas tuas preocupações principais, Henrique!

    Complemento com um “Negrizinho” básico…
    “A grande crise da esquerda não está no fato de que União Soviética acabou ou na globalização. A grande crise da esquerda está no fato de que ela não compreende como mobilizar o trabalho. A grande crise da esquerda está no fato de que crê até mesmo que as pessoas devem se tornar empresárias de si mesmo. Não. É a multidão que se torna empreendedora. É a metrópole que produz. São as relações que produzem. É o fato de reunir cultura e capacidade técnica, grandes escolas, capacidades de comunicação entre as pessoas e modificações dos corpos e de cérebros. E esse é o hoje o problema da esquerda. A esquerda, enquanto não conseguir fazer isso, deverá sempre sofrer a ilusão de que existem indivíduos que, com muito esforço, colocam para trabalhar a mulher a mãe e o filho e conseguem se tornar empresários.”

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