A pandemia como catalisadora da asfixia da educação

Texto elaborado por Rafael Malhão,
para a Revista Pimentalab – Abril 2021, V.1 – “É isso o futuro?”

A formação histórica brasileira privilegiou a produção de uma condição perceptual quase imune às múltiplas violências com as quais os brasileiros se defrontam cotidianamente. E, em alguma medida, boa parte das violências rotineiras que presenciamos no Brasil são atravessadas pela figura do Estado, seja pela sua total ausência proposital seja quando ele é o próprio perpetrador das violências.

A pandemia, possivelmente a maior crise sanitária e humanitária deste século, vem escancarando e catalisando nossos mais variados problemas, desde os arranjos entre as indústrias de produção de alimentos, a devastação da biodiversidade, a ampliação dos sistemas digitais de controle, as desigualdades socioeconômicas e tecnológicas. Em um cenário em que mais de 386 mil1 pessoas perderam suas vidas pela ação do coronavírus e em que o Brasil voltou a figurar no mapa mundial da fome, contando com 27 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, ainda assim o Estado brasileiro consegue criar mais mecanismos para garantir condições sub-humanas para sua população.

Com a necessidade de distanciamento físico e a migração em massa das atividades laborais, de lazer e estudo para o mundo digital, boa parte dos estudantes brasileiros, em especial os da rede pública, viu negado mais uma vez o acesso à educação. Se até o início da pandemia a educação brasileira agonizava por infraestruturas precárias, falta de todo e qualquer tipo de materiais didáticos, professores com salários e condições de trabalho aviltantes e muitos estudantes em condições de vulnerabilidade social, com a pandemia soma-se a isso tudo a falta de acesso a equipamentos digitais e redes de internet que viabilizam o acesso à educação neste momento.

Em dezembro de 2020 foi aprovado na Câmara de Deputados e, em fevereiro de 2021, no Senado um projeto que garantiria acesso gratuito à internet por alunos e professores da rede pública, porém em março o presidente vetou integralmente o projeto com a justificativa de que a medida não estimava o impacto orçamentário e financeiro para o cumprimento da meta fiscal. Como não lembrar de Darcy Ribeiro e sua célebre frase: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. O atual governo não se contenta em mobilizar todas as forças para que a sua necrogestão colabore com as consequências próprias da pandemia, é necessário que a população antes de ser levada à morte passe por todos os suplícios possíveis (e os impossíveis também). Não basta conduzir à morte, é preciso humilhar antes. A base orgânica de apoiadores do governo federal tinha em suas linhas de frente no período eleitoral a defesa do homeschooling como estratégia de combate na “guerra cultural” contra a doutrinação “marxista-globalista” aplicada nas escolas. Agora, com três anos de governo, no pior momento da pandemia no país, essa mesma base orgânica de apoiadores do governo luta pela reabertura das escolas e instituições de ensino. Não é à toa que, no dia 20 de abril de 2021, a Câmara de Deputados aprovou o projeto de Lei 5529/20 que transforma a educação básica em serviço essencial e, portanto, poderá permanecer funcionando apesar da pandemia.

Tais movimentos do atual (des)governo colocam por terra um argumento corrente sobre a postura de governos conservadores, de que são contra o campo cultural e educacional. Na verdade, esse é um dos campos de batalha que os governos conservadores mais estimam, pois querem instaurar formas de cultura e moral muito circunscritas, que não condizem com o tensionamento e a captação de perceptos e afecções (Deleuze & Guatarri, 1992) próprios à prática artística na elaboração das possibilidades de compreensão e percepção do real.

A infeliz coincidência entre o atual governo com a pandemia, o encontro desta com o pandemônio, é a materialização de um mau encontro, ou de uma afecção triste, como diria Spinoza: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções” (2009: 96); […] “Vemos, assim, que a mente pode padecer grandes mudanças, passando ora a uma perfeição maior, ora a uma menor, paixões essas que nos explicam os afetos da alegria e da tristeza. […] Por tristeza, em troca, compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor. Além disso, chamo o afeto da alegria, quando está referido simultaneamente à mente e ao corpo, de excitação ou contentamento; o da tristeza, em troca, chamo de dor ou melancolia.” (2009:105)