Texto elaborado por Bru Pereira,
para a Revista Pimentalab – Abril 2021, V.1 – “É isso o futuro?”
A história contemporânea já não se escreve a partir dos sobreviventes, mas a partir do número de mortos. — Sayak Valencia. Capitalismo gore.
Penso que, se ainda posso me dirigir a um “nós”, ou me incluir em seus termos, estou falando àqueles de nós que vivem, de certa maneira, fora de si mesmos, seja por paixão sexual, luto emocional ou fúria política. — Judith Butler. Violência, luto, política.
Nos primeiros meses da pandemia do novo coronavírus, para aqueles que eram incapazes de deixar de repetir o refrão “a economia não deve parar”, a pergunta sobre o que fazer com o número de mortos que a não adoção de medidas eficazes de “isolamento” poderia acarretar, os fez mobilizar uma variedade de discursos que ora se assentavam na negação da gravidade da situação ora faziam uso de estratégias que enquadravam o problema como uma inevitabilidade. Os discursos do presidente, por exemplo, alterna(ra) m desde a afirmação da pandemia ser só uma gripezinha, uma fantasia ou um conluio midiático para desmoralizar seu governo; até as respostas cínicas do tipo “e daí?” sobre o aumento do número de mortes ou que, apesar de lamentá-las, esse “é o destino de todos”. Neste último mês, depois do Brasil atingir por dias consecutivos o recorde diário de mortes por COVID-19 — alcançando a marca de 4.000 mortes diárias e se encaminhando, enquanto escrevo este texto, para ultrapassar o número de 400 mil mortes em pouco mais de um ano após o primeiro óbito pela infecção no país —, o presidente voltou a comentar sobre elas: “vão ficar chorando até quando? Temos que enfrentar os problemas”. Aproveito esta oportunidade para pensar brevemente, seguindo alguns trabalhos de Judith Butler, sobre a recusa do luto e do tipo de política instaurada por tal recusa. Igualmente, gostaria de pensar sobre que tipo de mudanças de enquadramento são operativos na passagem de uma resposta diante dos mortos formulada em termos de “e daí? Esse é o destino de todos” para aquela que expressa que o “choro precisa acabar”, pois temos que “enfrentar os problemas”. Em ambas, o pano de fundo permanece o refrão perverso “a economia não deve parar”, complementado pelo não-dito de que a economia não deve parar mesmo que o corpo pare. Assim, o que parece ser reafirmado, de novo e de novo, dentro de diferentes enquadramentos discursivos, é o caráter sacrificial da cidadania neoliberal (Brown, 2018). Retomo o conceito de cidadania sacrificial de Wendy Brown, pois acredito que ele complexifica as discussões de Butler sobre as relações entre o luto e a política, levando em consideração que, no contexto do discurso de Bolsonaro, o que aparece não é uma recusa ao luto por uma recusa ao reconhecimento de uma vida como uma vida vivível; mas uma definição de uma vida passível de ser vivida na medida em que ela é definida como uma vida produtiva capaz de sustentar a economia através de um sacrifício compartilhado. Segundo Brown, o idioma sacrifical é um modo de justificar a “conduta não recompensada” da cidadania neoliberal, isto é, o tipo de justificação que mantém os sentimentos de liberdade e de igualdade — transmutados, no neoliberalismo, em empreendedorismo e competitividade — face ao perigo constante da descartabilidade: “enquanto a cidadania neoliberal deixa o indivíduo livre para cuidar de si mesmo, ela também o compromete, discursivamente, com o bem-estar geral — demandando sua fidelidade e potencial sacrifício em nome da saúde nacional ou do crescimento econômico” (Brown, 2018: 10) No atual contexto pandêmico, a moralização do sacrifício individual-coletivo é atravessada por outras normatividades. Na medida em que discursos como “é preciso enfrentar o vírus como homem” ou que o Brasil deve deixar de ser um “país de maricas” e enfrentar a pandemia de “peito aberto” ou ainda, de maneira mais sutil, a afirmação de que “pais de família” precisam trabalhar “para colocar comida nas mesas das casas de suas famílias”, recolocam o sacrifício como motivação e também o alinham a modos patriarcais de exercício da masculinidade. No entanto, é importante ter em mente que apesar de tais discursos normatizarem e moralizarem o sacrifício e a masculinidade, eles não têm apenas os homens como destinatários. As mulheres parecem também ser mobilizadas por eles: ainda mais se levamos em conta que versões moralizadas de masculinidade frequentemente acompanham o recentramento da família heterossexual e nuclear como unidade de florescimento moral por excelência. Contudo, esse é um ponto que não pretendo desdobrar aqui, pois meu interesse é pensar o aparente paradoxo entre a valorização da cidadania sacrificial e a desqualificação do trabalho de luto. Certamente, o paradoxo só existe se podemos estabelecer que o luto sendo recusado é o luto pela perda dos mesmos sujeitos que parecem ser valorizados através de seu sacrifício em potencial. Sendo quase impossível estabelecer positivamente tal relação, proponho que mantenhamos o problema como uma forma de diagramar uma experiência de pensamento em torno da questão de Judith Butler (2019b: 9) acerca de “qual forma a reflexão política … deve tomar se consideramos a violabilidade e a agressão como pontos de partida para a vida política?”. O trabalho do luto é um tema presente desde as primeiras obras de Judith Butler. Em Problemas de gênero (2003), o luto e os mecanismos (narcísicos) de identificação melancólica têm importância central para a compreensão da psicodinâmica dos sujeitos que assumem uma posição generificada, levando Butler a cunhar o conceito de melancolia do gênero. Esse conceito vai ser retomado em Corpos que importam (2019a) numa discussão sobre perda de vínculos de parentesco e sua refeitura por sujeitos que desafiam a cisheteronormatividade. Contudo, é apenas na década de 1990 que a melancolia de gênero é conectada com o questionamento acerca da aparente impossibilidade da cultura estadunidense em realizar o trabalho do luto das perdas de vidas homossexuais durante a epidemia de HIV/AIDS (Butler, 1995). Nesse momento, a problemática do luto extrapola uma reflexão sobre a psicodinâmica dos sujeitos generificados para se conectar à reflexão acerca do reconhecimento da vida — naquele momento, a vida de homossexuais — como uma vida possível, desejável/desejada e, portanto, passível de ser enlutada. Já nos trabalhos mais recentes de Judith Butler (2019b, 2019c), o luto enquanto uma experiência pública é abordado a partir do seu potencial em coletivizar o reconhecimento da vulnerabilidade de toda a vida e, assim, nos interpelar acerca da necessidade de uma oposição radical à violência, que é entendida pela autora como a exploração da nossa vulnerabilidade constitutiva. É o reconhecimento público da vulnerabilidade que parece colocar o luto em oposição à exortação moral do sacrifício dos cidadãos. Se retornamos à emergência da cidadania sacrificial sob o neoliberalismo, encontramos em operação uma série de dispositivos que fazem e mantém a vulnerabilidade dos indivíduos, produzindo um tipo de liberdade que os torna “extremamente isolados e desprotegidos, em risco permanente de desenraizamento e de privação dos meios vitais básicos, completamente vulneráveis às vicissitudes do capital” (Brown, 2018: 8). O sacrifício, como dito anteriormente, é uma forma de justificar o despojo e a suscetibilidade a que esses indivíduos estão entregues ao assumirem para si o compartilhamento da responsabilidade pelo projeto neoliberal de crescimento econômico. A vulnerabilidade é inscrita, portanto, enquanto um projeto de sacrifício compartilhado que não se compreende como oposto aos interesses individuais. Mas se a vulnerabilidade precisa aparecer como projeto sacrificial coletivo de não deixar a economia parar, ela não pode ser apresentada como uma dimensão atentiva/responsiva e que nos demanda um compromisso com uma política vital radicalmente oposta à violência. O luto opera tal trabalho: ele coletiviza o reconhecimento de que toda vida merece ser vivida de modo pleno, ou seja, livre de perigos e violência. O luto público é uma aposta, segundo Butler, no cuidado e no reconhecimento à vulnerabilidade como condições para a política. Assim, recusar o luto — “vão ficar chorando até quando?” — é uma forma de recusar o enquadramento do sacrifício — “é preciso enfrentar o vírus como homem” — enquanto violência. Igualmente, podemos pensar em dois processos distintos de coletivização em operação na cidadania sacrificial e no luto público: se na primeira encontramos uma forma de coletivização através da abstração de uma economia que não pode parar; o segundo coletiviza a concretude terrestre de uma vida implicada, uma vida em que somos feitas e desfeitas umas pelas outras. Em suma, o sacrifício demanda uma ética niilista e ressentida capaz de destruir a própria futuridade (Brown, 2020: 220); enquanto uma política de luto público requer uma ética radical e implicada do presente que nos convoca a reconhecer “o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro” (Butler, 2019c: 31).