Extrair metal e fazer dinheiro, extrair madeira e frutos da terra. Criar indústrias e seus combustíveis, plantar em grande escala, dinamitar, converter a vida e suas relações, ecossistemas em recursos. Cercar, inundar, provocar epidemias e deficiência imunológica, fraturar o tecido vivo da biosfera, converter em energia, ordenar, confinar. Coletar, codificar, analisar, mensurar, modelização da vida. Conquistar. O extrativismo se constitui como peça fundamental da máquina social, tecnopolítica e produtiva que organiza o capitalismo e sua política colonial, atravessa humanos e outros que humanos e impõe um novo regime geo-histórico para a vida na Terra.
Máquina de Captura fabricando mundos racializados de asfixias e intoxicação. Extração do trabalho não pago, extração da vida de pessoas escravizadas ou proletarizadas, coerção, simplificação ecológica, chantagens e adoecimento. Xawara. Extração de dados, hoje, nos ambientes cibermediados pelas quais toda a vida e suas relações passam a ser envolvidas, mediadas e mensuradas, extração pelas formas digitais de vigilância que convertem também o conhecimento coletivo, a atenção e a vida dos afetos em recurso e informação privada. O Vale do Silício e os novos delírios de expansão extra-terrestre erguem-se pelo salar de Uyuni na Bolívia, por Chuquicamata no Chile. Imaginam a colonização de Marte para…. a extração de minérios no planeta vermelho, como afirma abertamente Elon Musk. Big Tech, Big Farm.
Da nova governamentalidade algorítmica passando pelos porões da Amazon: as tecnologias de extração atuam pelo controle de territórios, infraestruturas, desejos, dinamizam a psicoesfera. Irrigam as fazendas de servidores de nuvem que detém informações servindo tanto à indústria militar como às novas formas de publicidade, passando pelo mercado eleitoral. Desde a conquista europeia da América, ou antes, por trás de toda expansão imperial-colonial permanece um rastro de destruição, desterro e contaminação, tecnologias de apropriação do que é de todos ou de ninguém. A soberania moderna se constituiria pela ficção de “começar do zero” – diante do “novo mundo” a máquina extrativista inscreve nas paisagens, superfícies, mapas que designam o inanimado, os “meios” para os fins do Homem e sua Civilização. A política moderna, pela chave do progresso e em continuidade com a empreitada colonial, secularizou a guerra contra a insubmissão do não reconhecimento das fronteiras entre o humano e a “natureza”.
A gramática do extrativismo constitui a economia política de um modelo civilizatório. Seu êxito consiste em fabricar uma temporalidade própria, uma flecha do tempo que lança um novo ritmo e um novo mapa para o tempo geo-histórico. A ideia de progresso, como parte central de seus sistema de justificação e poder foi capaz de separar um conjunto enorme de modos de existência como tudo aquilo que deveria ficar para trás, conservado como vestígio de um passado: atrasado, selvagem, anedótico – como aquilo que podia, portanto, ser exterminado ou usufruído em nome da História. Antropoceno, Capitaloceno, Plantatioceno: Como cartografar as insistentes fraturas, retomar as histórias da terra e suas criaturas? Como seguir e imaginar novas e inesperadas alianças? A noção de “neoliberalismo” seria suficiente para dar conta da Guerra de Mundos atualizada pelos extrativismos hoje na América Latina?
Nem utopia romântica, nem fatalismo catastrofista que nos faz abaixar os braços diante tamanha destruição. Propomos aqui uma série de encontros de debate e troca de ideias, com mesas redondas em modalidade virtual para aproximar a experiência latinoamericana de luta e reflexão sobre extrativismo hoje e a ameaça autoritária que se recompõe nas suas diversas manifestações. Uma conversa aberta disposta a compartilhar uma compreensão atual sobre a magnitude do modelo predatório e o lugar da sua crítica no pensamento de alternativas políticas.
Pesquisa recente realizada pela Fiocruz e pela WWF na terra indígena Munduruku Sawré Muybu, na Bacia do Rio Tapajós, sudoeste do Pará, detectou contaminação por mercúrio em todos os indígenas testados, sem exceção – adultos, crianças e idosos. Níveis de mercúrio acima de limites estipulados como “seguros” foram detectados em 6 a cada 10 participantes. O garimpo e a mineração industrial em terras indígenas poderão avançar ainda mais se o Projeto de Lei 191/20 for aprovado, permitindo com que os numerosos pedidos de prospecção e lavra se abram para exploração com aval do Estado, além de hidroelétricas, estradas e outras formas de invasão. As ações da Vale do Rio Doce, enquanto isso, se transformam no investimento mais lucrativo do sistema financeiro brasileiro logo depois da empresa cometer um dos maiores crimes ambientais da história do Brasil. #PL490 pretende oficializar a grilagem como programa de governo. Capitalismo de desastre em procedimentos legais.
Numa ampla região que abarca partes do Brasil, Paraguai, Bolívia, Uruguai e Argentina, empresas de biotecnologia com apoio de governos conservadores e progressistas impuseram o monocultivo de soja com ampla utilização de agrotóxicos como glifosato que produz uma acelerada desflorestação, contaminação, deterioração irreversível do solo e das águas, intoxicação, malformações e problemas cognitivos, doenças várias da pele, câncer e problemas respiratórios, além de concentração da terra em poucas mãos e destruição da variedade de cultivos e economias locais. “República Unida da Soja”, mega-empresa Suíça de agrotóxicos se orgulhava, cinicamente, em informe publicitário. A indústria da agropecuária é um setor que testemunha uma das maiores taxas de suicidio no Brasil entre seus trabalhadores. No país, de 2007 a 2015 foram registrados 77.373 suicídios, cerca de 8.597 por ano nesse setor. Algumas pesquisas vêm apontando a relação entre substâncias químicas presentes nos agrotóxicos atuando no sistema nervoso central podendo desencadear quadros de depressão e ansiedade entre os trabalhadores. Há registros de crescente uso de agrotóxicos para sucídio por envenenamento, por parte de trabalhadores que os manuseiam.
No México e na Colômbia, como em outros lugares, vem crescendo um ativismo que defende redes hídricas e águas subterrâneas, contaminadas pela indústria ou esgotadas pela produção da indústria de alimentos. O trem Maia, o Aqueduto Independência, o Gasoducto Sonora. Projetos de integração interoceânico, novos portos e vias férreas por todo lugar. Em Cajamarca, Peru, a resistência contra a grande mineradora Conga deu lugar à organização dos Guardianes de las Lagunas, recuperando as tradicionais rondas camponesas para evitar a expansão da mineração, denunciando a falta de água, o aumento das doenças e a fraude em consultas manipuladas e falsas promessas de compensação. No Tapajós (Oeste do Pará), o projeto Arco Norte vista transformar a região num imenso corredor exportador de soja do Centro-Oeste.
No Chile e na Colômbia contra o extrativismo vemos cabildos da água, lutando contra o desvio de cursos de água nas fazendas e empresas de agricultura para exportação. Na defesa de formas de vida que persistem e encontram espaço de sobrevivência, lutas sociais latinoamericanas têm enfrentado poderes e articulado alternativas em processos de organização política e resistência. Corpos-territórios que experimentam paisagens de cura, proliferam a variedade diante da destruição, articulam inteligências simbióticas, multiplicidade contra a imaginação de escassez das monoculturas e seus muitos modos de envenenamento – esquivam-se, desviam a sanha dos poderosos e desestabilizam as fronteiras conceituais e políticas que separam natureza e cultura; o humano do mundo vivo, fazem emergir um outro regime de verdade.
A expansão do consumo, o crescimento econômico e o desenvolvimento celebrado na última década são fruto do aumento do extrativismo e, por consequência, dos conflitos territoriais que emergem com ele. Criminalização e morte de lideranças que lutam contra a destruição e, sempre, avanço sem consulta, violência e guerra de mundos com um vetor ligado ao mercado e o Estado que empobrece e elimina diferenças. Não existe desenvolvimento sem destruição e perda, e de nada serve o discurso do capitalismo sustentável, a promessa de uma mega mineração responsável, ou os dispositivos de chantagem que acompanham o discurso da “compensação”.
O extrativismo nos obriga a uma discussão com os consensos do poder. No período em que o progressismo latinoamericano governava a maioria dos países da região, longe de abrir um debate sobre o modelo que subjaz ao regime de acumulação, um neoextrativismo tomou embalo impulsionado pelas alianças com o agronegócio, investimentos e tentativa de financiar o Estado, eleições partidárias ou aliados do poder com a mega mineração, grandes obras. Caminhos planejados na medida da exploração empresarial e as necessidades do capitalismo sempre em expansão – a política estava sufocada por um jogo de interesses que obstruía as lutas coletivas da terra, os mundos que convocam muitos mundos como testemunhas da destruição e do colapso.
Um medíocre possibilismo ansioso pela alta do preço das commodities foi uma porta aberta por onde vimos chegar em vários países uma radicalização conservadora que acelera a entrega com participação dos poderes de governo, e a inação frente ao que se considera necessidade nacional de crescimento. O Fujimorismo, o uribismo, o bolsonarismo se conectam sem ambiguidades com os poderes de destruição local e benefício direto da extração ilegal que no progressismo faziam parte de articulações e alianças mais complexas.
Essas fraturas que nos matam mas das quais também somos servidos podem ser em alguma medida preservadas ou excluídas num mundo de cooperação? Como agir e viver com elas? Como interrompê-las ou recusá-las, como autodefesa, sem deixar de acreditar na potência da multiplicidade e em muitas formas políticas não representáveis?
Nas veias insistentemente abertas da América Latina, de Potosí a Mato Grosso do Sul, dos corpos e bens comuns da conquista colonial ao capitalismo de plataforma, o extrativismo nos constitui e nos alimenta. Extraímos para o mundo e o mundo nos extraí. O extrativismo percorre nosso sangue e é combustível das instituições que nos governam – milícias, grupos paramilitares, o Estado, o tecido metropolitano e seus fios, cabos, conexão de alta velocidade, encanamentos que tornam opacas as muitas formas de extração. Mas o extrativismo também nos chama para a luta.
Derrubamos estátuas de conquistadores e bloqueamos a atividade econômica. A colonização está, uma vez mais, na cena política das ruas no Chile, Equador, Colômbia. Na guerra da mercadoria pensamos numa greve anti-extrativa, anti -produtiva, onde os mundos soterrados, mal compensados, contaminados, manipulados em falsas consultas e explorados no roubo do nosso tempo, suor e ideias expressam suas recusas. Recusas em novas cumplicidades. Nos encontramos com florestas e rios, códigos abertos, formas contra-coloniais de práticas de conhecimento, na afirmação multiespécie da vida, mundos animais e vegetais com os quais não nos destacamos no auto atribuído direito de dispor do outro.
A recusa de nos tornarmos recursos.
Pensamento Selvagem
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