É o “fim” de qual trabalho? automação, padronização de tarefas e alternativas

Fotograma de “Sorry to bother you”

por Guilherme Henrique Guilherme

Esse ensaio surge a partir das reflexões suscitadas pela disciplina de tecnopolíticas no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Tendo por pano de fundo a discussão do encontro virtual dedicado ao debate de trabalho, automação e plataformização.

Introdução

Teses sobre a possibilidade do “Fim do Trabalho” ou, ao menos, da “perda de centralidade do trabalho” a partir de reestruturações produtivas e da inserção de novas tecnologias nos processos produtivos podem ser identificadas, contemporaneamente, desde a década de 1970. Gorz, por exemplo, em 1982, afirma que o projeto do socialismo teria que ser superado por um novo projeto, já que a questão central para o movimento de emancipação contra o capitalismo não seria mais o de conquistar o poder na condição de movimento de trabalhadores organizados, mas, sim, o poder de não ser mais trabalhador, a partir das possibilidades abertas pelo “avanço” técnico-científico do capitalismo no sentido da liberação do tempo de trabalho..

Esse autor identifica a existência de uma “Não Classe de Não Trabalhadores”, produzida pela dissolução das relações de produção capitalistas como consequência de novas técnicas e tecnologias produtivas. Para esse autor, “a abolição do trabalho é um processo em curso e que parece acelerar-se (…) no contexto da crise e da revolução tecnológica atuais, é rigorosamente impossível restabelecer o pleno emprego por um crescimento econômico quantitativo.’’ (GORZ, 1982, p. 11).

Quase 40 anos passados deste texto de Gorz, Benanav (2019) realiza uma abordagem que busca situar o debate sobre o trabalho a partir da indústria 4.0 e da mais recente automação de processos de trabalho.1 O autor levanta um ponto interessante ao perpassar sobre diversos momentos em que autores atribuem a escassez de empregos à reestruturações tecnológicas, chamando a atenção para outro fator que daria origem à falta de empregos: seria a crise capitalista, a falta de crescimento econômico, o motivo da falta de trabalho, e não, simplesmente, a substituição de trabalhadores por máquinas.

O autor, portanto, aponta para dois argumentos centrais no debate com autores que ele chama de “automation theorists”: o primeiro, como dissemos, a ideia de que a automação seria a principal causa do desemprego em massa no mundo, não chega à raiz do problema: seriam as características inerentes ao capitalismo as responsáveis pela não-utilização de larga força de trabalho. Os diferentes momentos em que “automation theories” surgiram são derivados, assim, de uma profunda preocupação acerca de um problema do próprio mercado de trabalho e de crise econômica.

O segundo argumento que chama a atenção é que, ao discordar de que a consequência da automação seria a completa falta de emprego para parcelas cada vez mais significativas da sociedade, Benanav afirma que o que se verifica é um aumento cada vez maior de empregos precários. Nas palavras do autor, trataria-se de um under-employment em vez de um mass unemployment. Em dados, o autor procura demonstrar como o trabalho que era o considerado “fora do padrão” em tempos de Pacto Fordista nos países centrais do capitalismo (o trabalho temporário, sem direitos, sem vínculos, sem organização coletiva) é, hoje, cada vez mais o trabalho “padrão”. O mercado de trabalho, desta forma, estaria se tornando “(…) bifurcado entre trabalhadores que ainda tem um emprego “padrão”, com alguma segurança proveniente deste trabalho, e uma massa crescente de trabalhadores, geralmente jovens, excluídos e que não possuem esses benefícios [tradução livre]” (BENANAV, 2019, p. 124).

Fim do trabalho ou radicalização da padronização e gerência do trabalho?

A partir desta exposição, gostaríamos de trazer uma conexão com outros autores, principalmente da sociologia do trabalho. Harry Braverman, ainda em 1974, ao se debruçar sobre os processos de trabalho tendo em vista o surgimento e a consolidação do capital monopolista, traça uma análise histórica e sociológica desde os princípios da subsunção do trabalho ao capital até o advento da gerência “científica” taylorista e, por fim, o surgimento dos trabalhadores de escritório. Haveria uma estrutura, em todo este processo, que polarizaria em seus extremos aqueles a quem se reserva instrução e aqueles que devem executar trabalho simples. Esta seria, segundo Braverman, uma lei geral da divisão do trabalho capitalista, que modelaria não apenas o trabalho, mas também populações inteiras, pois, a longo prazo, criaria uma grande massa de trabalho simples, enquanto surgiriam, também, em quantidades muito menores, trabalhadores cujos processos de trabalho seriam mais complexos. (BRAVERMAN, 1977. p. 80).

Huws, já na segunda década dos anos 2000, retoma essa discussão a partir da inserção das tecnologias de informação e comunicação nos processos produtivos. Analisando a divisão do trabalho de fins do século XX e início do século XXI, aponta para uma complexificação desta divisão. Para a autora, seria possível identificar uma “(…) fragmentação de atividades em tarefas separadas, tanto mentais quanto manuais, crescentemente passíveis de serem dispersas geográfica e contratualmente para diferentes trabalhadores, que podem mal saber da existência um do outro. Esse é um processo contínuo, com cada tarefa sujeita a divisões ulteriores entre funções mais criativas e (ou) de controle, por um lado, e outras mais de rotina e repetitivas, por outro. [grifo nosso] (HUWS, 2014. p. 17).

A tendência da divisão do trabalho tipicamente capitalista parece ser, portanto, a tendência da parcialização do trabalho, da divisão e da prescrição de tarefas, ainda que, em alguns momentos, seja observável o surgimento de trabalhos que demandam maior criatividade do trabalhador. Estes, no entanto, se assentam na massificação do trabalho repetitivo e tarefeiro.

Neste sentido, notamos como as reestruturações produtivas, as inserções de novas tecnologias nos processos de trabalho são também componentes de um processo de composição e recomposição de categorias profissionais, de saberes dos trabalhadores, de qualificação/desqualificação dos trabalhadores. É neste pano de fundo contextual e conceitual que gostaríamos de situar a mais recente automação. Uma conjuntura de perda de direitos provenientes do “pacto fordista” (conforme aponta Benanav), mas, também, de reestruturação produtiva que “empurra” diversos trabalhos para uma gerência mais determinada pela maquinaria, que demanda um trabalho repetitivo e padronizado para massas crescentes dos trabalhadores.

Automação como nova etapa de reestruturação do trabalho: perspectivas

É importante, conforme apontam Smith e Fressoli (2021), criticar o “essencialismo” do futuro automatizado, sua auto-declarada inevitabilidade. Para estes autores, organizações de grande monta, partícipes do Fórum Econômico Mundial (agências governamentais, investidores, corporações, associações de indústrias etc), produzem e promovem um imaginário de uma história dada, fixa, como se escrita por um script. Neste script, tecnologias que, em aparência, inseririam alterações radicais na sociabilidade humana, na verdade, seguem o papel de projetar, dentro do futuro, as nossas atuais estruturas sociais e econômicas.

Os autores relembram que a automação é “propalada pela competição por maior produtividade do trabalho, controle gerencial e acumulação de capital [tradução livre]” (p, 15). Mas, para além disso, a automação seria, recorrentemente, um lugar de disputa e luta social. Smith e Fressoli apontam, então, para a existência do que chamam de industrious spaces, onde ocorreria uma pós-automação, em contraponto ao discurso apologista desta automação capitalista. Estariam sendo criadas experiências para uma outra apropriação das tecnologias nestes espaços, que, segundo os autores, são construídos à margem da industrialização de automação. Seriam redes pequenas de produção quase artesanal e de subversão e reformulação de tecnologias, compostas por pessoas colaborando para produzir bens e serviços, mas, também, para encontrar sentido em seu trabalho, sendo compostas, por vezes, por trabalhadores formalmente empregados na economia industrial ou de serviços, que, não enxergando sentido em seus trabalhos, procuram os industrious spaces para contribuir com seu know-how.

Esta linha da argumentação dos autores nos relembra Gorz, citado no início deste ensaio. Este autor, na década de 80, apontava para um movimento similar na disputa entre os interesses de classes divergentes no que diz respeito à automação: a auto-produção de valores de uso como subversão à subordinação do trabalho, realizada, também, por trabalhadores que em seus empregos formais não encontravam realização e sentido.

Este “comer pelas beiradas” na luta de classes nos parece fornecer elementos interessantes mas, também, limites a serem pensados, ainda mais quando levadas em consideração as experiências históricas de auto-gestão que, sem constituir um movimento de massa e organizado, acabam derrotados ou adaptados (Loveluck (2018), por exemplo, fornece um valioso debate acerca da cultura hacker neste sentido). Por isso, para além da constituição de espaços de autonomia e de trabalho criativo, fora das tendências supracitadas de trabalho padronizado e repetitivo, nos parece fundamental a formação de força social que questione a hegemonia e o “essencialismo” da automação voltada à valorização do valor. A enorme tarefa histórica de superação do trabalho e do desenvolvimento tecnológico voltados à valorização do capital e à gerência subordinada do trabalho passa, portanto, pela própria superação da divisão capitalista do trabalho. Os espaços “pós-automação” podem se tornar fundamentais nesta disputa, mas caminhando junto com a organização política e teórica das grandes parcelas de classe que se vêem submetidas ao trabalho precário, repetitivo, extenuante e padronizado todos os dias.

Referências

BENANAV, A. Automation and the Future of Work—2. in: New Left Review, 2019, pp. 117–146.

BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: A degradação do trabalho no século

XX. Rio de Janeiro. Zahar editores, 1977

HUWS, U. E. Vida, trabalho e valor no século XXI: desfazendo o nó. in: Caderno CRH, v. 27

n. 70, p. 13–30, 2014.

LOVELUCK, Benjamin. Redes, liberdade e controle: uma genealogia política da internet. Editora Vozes, 2018.

SMITH, A. & FRESSOLI, M. Post-Automation, 2021 (artigo no prelo).

1Neste ensaio, utilizaremos a expressão mais recente automação por concordar com Benanav em seu argumento de que a automação é um tema constante da história do capitalismo, aparecendo no século XIX e ressurgindo na década de 1930, 1950, 1980 e atualmente (p. 10). Utilizaremos esse termo, ainda, como forma de questionar a ideologia essencialista que preconiza que a automação atual, da indústria 4.0 e da internet das coisas, seria a última, a substituir, por fim, o trabalho humano.