[resenha] Quatro décadas até “A Morte da Natureza” no Brasil

Alana Moraes

7 de julho de 2025

Publicado no Le Monde Diplomatique

Mais de 40 anos separam o lançamento de A Morte da Natureza da sua primeira publicação no Brasil. Foi um longo inverno de espera até que possamos, finalmente, ampliar o acesso e a circulação, entre nós, de uma das obras precursoras na reflexão sobre a relação entre a história da ciência e os movimentos contestatórios que eclodiram na década de 1960 no mundo. Entre outras contribuições, o livro abriu caminho para um campo de pesquisa e intervenção crítico às narrativas heroicas da ciência e da técnica, fertilizando um solo — então ainda incipiente, mas hoje extremamente frutífero — por onde transitam a teoria feminista, os estudos sociais da ciência e da técnica, e também a história ambiental. 

Nessas últimas quatro décadas, Carolyn Merchant tornou-se uma referência incontornável para se pensar a relação entre a história da ciência e a história do capitalismo. Sua pesquisa de fôlego revelou como essas histórias, em arranjos sociotécnicos de coimplicação, produziram ficções eficientes na sustentação das formas de sujeição nos mundos humano e não humano — especialmente aquelas ligadas ao regime de sexo-gênero e ao que se entende, modernamente, por “natureza”. Influenciada pelo trabalho de outra mulher precursora, Rachel Carson e sua Primavera Silenciosa, mas também engajada como militante antimilitarista, tendo testemunhado o papel da ciência na Guerra do Vietnã, Merchant desenvolveu uma prática de conhecimento transdisciplinar e interventiva, provocando seus interlocutores a pensar uma ciência capaz de se abrir aos anseios de transformação radical — capaz de confrontar as formas de dominação engendradas pelo projeto de modernização capitalista. 

A Morte da Natureza ousou apresentar uma investigação feminista sobre a reconceitualização da natureza operada pela Revolução Científica entre os séculos XVI e XVII, propondo aquilo que seria uma história a partir do “ponto de vista da Terra”. Ora concebida como realidade inerte, ora como intempestiva e desordenada, a natureza, como mostra Merchant, foi sistematicamente metaforizada com atributos imaginados como femininos. Especialmente a partir do século XVI, a “natureza”, as mulheres — e também as pessoas racializadas — passaram a figurar como “recursos disponíveis”: matéria passiva, a ser examinada, ordenada e gerida. Foi com Francis Bacon, considerado um dos fundadores da ciência moderna, que a metáfora da natureza como força feminina instável e irracional ganhou proporções decisivas. Próximo dos tribunais inquisitoriais que julgavam mulheres acusadas de bruxaria, Bacon defendia que o método científico deveria assemelhar-se a técnicas de tortura, capazes de arrancar os segredos ocultos da natureza. Esta, por sua vez, deveria ser convertida em “escrava”, “posta em constrangimento” pelas nascentes “artes mecânicas”. Já para Nicolau Maquiavel, outro pensador fundamental do período, a “arte da política” moderna consistiria justamente em dominar e controlar a fortuna — comparada a uma mulher imprevisível e a um “rio impetuoso”. 

Em uma trama que articula regimes de poder e saber, ciência e política, Merchant revela como as formas de governo sobre os corpos humanos e sobre o mundo vivo deixaram marcas profundas na própria escrita da terra. A Morte da Natureza persegue os rastros do que podemos reconhecer como uma ecologia da sujeição, instaurando e administrando as fronteiras que separam o que é considerado vivo e não vivo, aquilo que pode ser extraído ou convertido em recurso ou informação, o “conhecimento racional” e todas as outras práticas de conhecimento que devem ser enterradas de uma vez por todas.  

O avanço da revolução científica dependeu do combate a uma série de cosmopráticas que consideravam a terra viva e povoada por entidades animadas e em profunda interconexão —  do platonismo, o aristotelismo e o estoicismo, sem falar nas muitas formas indígenas de habitar o mundo em composição com outras espécies. A filosofia mecanicista, em suas muitas proposições, também elaborava uma outra imagem para transformação: ao invés de movimentos orgânicos mais ou menos autônomos produzidos em interações múltiplas, a transformação agora era vista como uma força sempre exterior na direção de uma matéria passiva e que, sempre que possível, deveria servir aos objetivos da expansão mercantil de produção de riqueza. A sua história da filosofia parece sugerir uma verdadeira guerra de forças anímicas na produção do mundo — se antes da expansão do capitalismo, o mundo era visto como sendo composto por uma natureza viva e animada, posteriormente, foram a mercadoria e o próprio capital que assumiram essa dimensão anímica, imaginadas, inclusive a partir de imagens orgânicas de crescimento, força, expansão. Uma leitura muito similar, aliás, com aquela feita por Davi Kopenawa quando pensa o “mundo da mercadoria” como um mundo povoado de forças sedutoras de captura, de adoecimento e morte.  

Dessa forma, Merchant confecciona uma história biocultural da modernidade no Ocidente, recusando a divisão entre uma história social e outra natural — ou mesmo entre uma história das ideias, de um lado, e das técnicas, de outro. Em vez disso, propõe um modelo ecossistêmico de mudança histórica, no qual a conceitualização da natureza aparece como peça central na estruturação das formas de poder. 

Se hoje a superação da dicotomia natureza/cultura parece ser o ponto de partida mínimo e epistemologicamente necessário para os estudos críticos do Antropoceno, naquele momento era, no mínimo, perturbadora a constatação de que mesmo as grandes democracias euro-americanas dependiam da ampla e irracional exploração de recursos naturais, articulada às suas formas de dominação do mundo vivo. 

Merchant expõe uma verdadeira anatomia da filosofia mecanicista para revelar o coração de seu movimento impulsionador: o anseio por previsibilidade e controle, capaz de fazer emergir uma natureza que “obedece a leis” e que, podemos sugerir, encontra seu segundo momento vigoroso de expansão com a cibernética, na segunda metade do século XX. Como afirma a autora, o domínio da natureza passa a depender do humano enquanto “operador”, e “a operação eficiente resulta do arranjo racional e ordenado dos componentes de um sistema” (Merchant). O mecanicismo, defende Merchant, torna-se a própria ideologia fundante da filosofia ocidental. 

Com A Morte da Natureza, Merchant lançava um coquetel molotov contra a aliança histórica entre capitalismo e tecnociência, sugerindo ainda que o grande problema filosófico dos séculos XVI e XVII foi o problema da ordem e do controle de tudo aquilo que parecia insistir em perseverar a partir de movimentos distribuídos, das relações de interdependência que garantiam a autonomia de coletividades multiespécie.  Hoje, com o colapso das coordenadas modernas, como sugeria Latour, e diante das evidências cada vez mais críticas da catástrofe socioecológica, o livro de Merchant adquire uma renovada atualidade. Um antídoto contra a essencialização das categorias de mulher, sexo ou natureza, A Morte da Natureza parece nos convocar a pensar também sobre a morte de um feminismo cúmplice das histórias de progresso que forjou um certo sentido de liberdade através do espelho das comunidades liberais brancas secularizadas. Ao mesmo tempo, também a necessária morte de um novo impulso essencialista e autoritário que, de dentro do feminismo, pretende reestabelecer o governo do regime de sexo-gênero. A Morte da Natureza pode ser recebido agora como um manifesto de uma ciência feminista que seja capaz de retomar a força da proposição de uma ecopolítica libertária atuando no favorecimento de emergências inesperadas, de tecnicidades comprometidas com as alianças multiespécie, das composições que animam as forças desobedientes da terra: rios impetuosos que ressurgem inesperadamente, trabalhadores que exigem tempo livre, coletividades que defendem a autonomia de suas terras e relações contra as tecnologias de controle e domínio. Como ela mesma convoca, mais do que nunca: “o mundo deve ser virado de cabeça para baixo”.  

Alana Moraes é antropóloga e professora na UNIFESP.