Devolver a eles esse grande susto

por Bru Pereira

  1. Este ensaio é uma pequena coleção de fragmentos para compor com e a partir de algumas reflexões sobre negridade enquanto um procedimento metodológico, isto é, um conjunto de modos de conhecer — e que atravessa diferentes formas expressivas — em que pensadoras negras “imaginam e praticam a libertação à medida que são oprimidos pelo que só posso descrever como acumulação induzida biocentricamente por expropriação” (Katherine McKittrick, 2021, p. 3). Este modo de conhecer e elaborar uma experiência do recalibramento da humanidade que escapa o gênero/estilo da Homenidade1, é descrito por Sylvia Winter (1990), inspirada pelo trabalho de feministas afro-caribenhas, como uma experimentação em “solos demoníacos”. Ainda me inspiro na proposta de Denise Ferreira da Silva (2019) de uma poética negra feminista investida de um “mandato ético de abrir outros modos de conhecer e fazer” (p. 86) que perturbem o pilar ontoepistemológico da separabilidade e demandem “a restauração do valor total expropriados das terras dos nativos e do corpo do escravo”(p. 87); e na proposta de Stefano Harney e Fred Moten (2019) de um estudo preto, que escape a captura da dívida, no qual se “estuda sem uma finalidade, planeja[-se] sem pausa, rebela-se sem política, conservam sem patrimônio” (p. 67).
  1. Dinossauros na Quebrada, de Danez Smith2

Vamos fazer um filme chamado Dinossauros na Quebrada.

Jurrasic Park encontra Sexta-feira em Apuros encontra À Procura da Felicidade.

Tem que haver uma cena em que um menininho preto está brincando

com um dinossauro de brinquedo no ônibus, aí olha pela janela

& vê o T. Rex, pois tem que ter um T. Rex.

Não deixa Tarantino dirigi-lo. Na sua versão, o menino brinca

com uma arma, a metáfora: meninos pretos brincam com suas próprias vidas,

o presságio de seu fim, a imagem cuspida e escarrada de seu pai.

Foda-se, a criança tem um Brontossauro ou um Tricerátops de plástico

& isto é sua prova da existência de mágica ou de Deus ou do Papai Noel. Quero uma cena

em que um Pterodátilo caga em um carro de polícia, uma cena

em que a vendinha da esquina se torna um campo de batalha. Não deixa

os irmãos Wayans neste filme. Não quero nenhuma merda racista

sobre pessoas asiáticas ou estereótipos batidos de latinos.

Este filme é sobre uma quebrada com nobres cidadãos —

filhos de escravos & imigrantes & drogados & exilados — salvando sua cidade

de dinossauros de verdade. Não quero um filme policial cafona mas progressista,

com um herói Hmong gostosão, que tem uma parceira preta engraçada

e durona. Este não é um filme para Will Smith

& Sofia Vergara. Quero vovós na varanda derrubando Velocirraptors

com armas que elas escondiam nas paredes e debaixo dos colchões. Quero aqueles dinossaurinhos

que cospem e gritam. Quero que Cicely Tyson faça um discurso, talvez dois.

Quero que Viola Davis salve a cidade na última cena com um punho preto e afrofoice

atravessando o longo pescoço de sangue-frio do último dinossauro. Mas este não pode ser

um filme de pretes. Este filme não pode ser desprezado

por conta de seu elenco ou sua audiência. Este filme não pode ser uma metáfora

pra pessoas pretas & extinção. Este filme não pode ser sobre raça.

Este filme não pode ser sobre a dor de pretes ou causar sofrimento ao povo preto.

Este filme não pode ser sobre a longa história de existir uma longa história com a sofrença.

Este filme não pode ser sobre raça. Ninguém pode dizer neguinho neste filme

se não puder dizer isso na minha cara em público. Sem piadas de frangotes neste filme.

Sem bala perdida nos heróis. & ninguém mata o menino preto. & ninguém mata

o menino preto. & ninguém mata o menino preto. Além disso, de qualquer modo, a única razão

para eu querer fazer este filme é por conta daquela primeira cena: o menininho preto

no ônibus com um dinossauro de brinquedo, seus olhos arregalados & infinitos

seus sonhos possíveis, pulsando & bem ali.

  1. Danez Smith, poeta prete e não-binárie, imagina um filme capaz de retratar histórias diferentes sobre meninos pretos. Histórias que escapam os tropos da violência e do extermínio e que exigem que vidas negras sejam definidas somente a partir de sua violabilidade. A procissão de imagens e de discursos de morte perseguem as narrativas ficcionais e não-ficcionais de protagonistas pretas, transformando todo ato de resistência em uma prática de sobrevivência. Passado, presente e futuro negros são atravessados por imaginários de descartabilidade:

“É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” (Carolina Maria de Jesus, 1960, p. 17).

  1. Que tipo de futuridade entrevemos quando a negridrade aparece constantemente recortada por entre arquivos que são uma “sentença de morte, um túmulo, uma exibição do corpo violado, um inventário de propriedade, um tratado médico sobre gonorreia, umas poucas linhas sobre a vida de uma prostituta, um asterisco na grande narrativa da História” (Saidyia Hartman, 2020, p. 15) ? Que tipo de futuro entrevemos quando somos capazes de imaginar um futuro apto a incorporar a radicalidade da negridade como insistência perturbadora, como aquilo que “faz tremer”?

Ser e vir-a-ser outre ao invés do que devemos, ou outre ao invés do que dizem que somos capazes de ser ou vir-a-ser pelos mandatos ontológicos, é encontrar vida e vivabilidade na mutabilidade e rearranjo em direção ao ilegível, que é o mesmo que desafiar o ontológico — em outras palavras, o para-ontológico. Tremor subjetivo e existencial, tremor “ontológico”, é a vida reconfigurativa pela qual buscamos; é a vida para-ontológica. (Marquis Bey, 2020, p. 17)

4. Um imagem que circulou pela internet durante as rebeliões de Fegurson, Missouri, em 2015, após o assassinato de Michael Brown por policiais capturou a atenção de Ruha Benjamin, fazendo-a considerar o futuro como uma questão relevante para a imaginação sociológica. A imagem, uma fotografia de um muro pixado com a sentença “Ferguson é o futuro”, gerou no pensamento de Benjamin questionamentos acerca de que futuro estava prestes a se desdobrar: um futuro “de polícia militarizada que aterroriza residentes usando tecnologias de guerra ou um futuro de comunidades corajosas que demandam dignidade e justiça usando tecnologias de comunicação?” (Ruha Benjamin, 2019, p. 7)

5.

6. Pensar raça como um tipo de tecnologia, argumenta Ruha Benjamin (2016, p. 22), é imaginar um tipo de tecnologia capaz de criar “universos sociais paralelos e morte prematura” — ou, como proposto por Orlando Patterson (2008) para pensar a escravatura, capaz de produzir morte social. Se integramos a raça como tecnologia à nossa imaginação da tecnologia como futuro: que tipo de futuros estão sendo condenados à morte prematura?

Quem e o que é mantida no lugar para permitir a inovação em ciência e tecnologia? Que grupos sociais são classificados, encurralados, coagidos e capitalizados para que outros sejam livres para mexer, experimentar, projetar e engendrar o futuro? (Ruha Benjamin, 2019, p. 4)

7. SASKIA – Tô Duvidando (part. Edgar)

8. No mesmo ano em que nos falava sobre a importância de insistirmos em realizar o Trabalho de Vida, Matheusa Passarelli (2018, s/p) foi assassinada. O ano de 2018 pareceu tenebroso para as que viviam numa “terra [que] é lida por linhas que a encheram de nosso próprio sangue”: presenciamos o assassinato de Marielle Franco e vimos ser eleito um presidente cuja plataforma política em muito se assentou sobre uma mobilização do ódio. Também foi o ano no qual Matheusa foi brutalmente assassinada no Rio de Janeiro. A morte da estudante e artista marcou profundamente a dinâmica das movimentações trans e pretes, em especial as do eixo Rio-São Paulo, e trouxe à tona uma mudança de atuação orientada pela resistência à violência para uma outra pautada pela insistência na vida (cf. Ventura Profana, 2020).

9.

10. Referências

BENJAMIN, Ruha. 2016. Racial fictions, biological facts: expanding the sociological imagination through speculative methods. Catalyst, 2(2), pp. 1-28.

BENJAMIN, Ruha. 2019. “Introduction: discriminatory design, liberating imagination”. In: Captivating technology: race, carceral technoscience, and liberatory imagination in everydaylife. Durham: Duke University Press.

BEY, Marquis. 2020. The problem of the Negro as a problem for gender. Minneapolis: University of Minnesota Press.

FERREIRA DA SILVA, Denise. 2019. A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo (Oficina de Imaginação Política).

HARNEY, Stefano; MOTEN, Fred. 2013. The undercommons: fugitive planning & black studies. Brooklyn: Autonomedia.

HARTMANN, Saidiya. 2020. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, 23(3), pp. 12-33.

JESUS, Carolina Maria de. 1960. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática.

McKITTRICK, Katherine. 2021. Dear Science and other stories. Durham: Duke Univerity Press.

PASSARELI, Matheusa. 2018. Trabalho de vida. Trabalho não publicado.

PROFANA, Ventura. 2020. Profecia de vida. PISEAGRAMA, 14, pp. 54-63.

WYNTER, Sylvia. 1990. “Beyond Miranda’s Meanings: Un/Silencing the ‘Demonic Ground’ of Caliban’s ‘Woman’”. In: Out of the Kumbla: Caribbean Women and Literature. Carole Boyce Davies & Elaine Savory Fido (eds.). Trenton: Africa World Press.

Notas:

1 Tomei a liberdade de traduzir Mankind por Homenidade, para manter a relação de distinção/semelhança com Humankind (Humanidade). Comumente, tanto mankind quanto humankind são traduzidos como humanidade.

2 Tradução de Bru Pereira. Original disponível em: https://www.poetryfoundation.org/poetrymagazine/poems/57585/dinosaurs-in-the-hood