O Não-Teatro e a Peste

Texto elaborado por Gustavo Lemos,
para a Revista Pimentalab – Abril 2021, V.1 – “É isso o futuro?”

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A essa altura já nos familiarizamos um bocado com as descrições clínicas da Covid-19, ao redor das quais orbitam os investimentos, as pesquisas, as notícias, as medidas de contenção. Mas a biomedicina não esgota a discussão: basta ver que suas próprias medidas chegam de maneiras e em níveis diferentes a depender de fatores tecnopolíticos e socioeconômicos, mas não apenas isso. A própria emergência de diversas formas de Coronavírus tem sido associada a práticas de agronegócio, diminuição de biodiversidade, desmatamento de áreas florestais etc, que por sua vez estão ligadas à alimentação, à produção energética e diversas outras estruturas fundamentais dos arranjos sociais. Ou seja, descrever a Covid-19 é uma vastíssima tarefa cartográfica multidisciplinar.
Esta era, de certa maneira, a perspectiva de Antonin Artaud em seu célebre texto O Teatro e a Peste, publicado originalmente em 1938 na obra Le Théâtre et son Double. Para Artaud, as então recentes descobertas acerca do “micróbio da peste” não explicavam em praticamente nada a Peste em si, uma vez que era apenas uma de suas etapas mais tardias. O micróbio, ou vírus, operaria a conexão complexa entre agentes de características muito distintas: expressões culturais, códigos morais, arranjos sociotécnicos, ontologias, corpos biológicos, afetos, inteligência e muito mais. Um dos desdobramentos desta conexão complexa seria justamente a deterioração dos órgãos humanos em que a consciência estaria mais manifesta ou prestes a se manifestar — o cérebro e os pulmões—, e este desdobramento seria confundido pela descrição clínica à Peste como um todo. Todavia, argumentava Artaud, a Peste seria uma forma de vida dotada de inteligência, cuja existência estaria intimamente associada a determinados estados mentais, humanos e não-humanos, em escalas individual e coletiva.  
O que me parece relevante no texto de Artaud é que ele estabelece uma grande importância para a dimensão estética deste agenciamento vivo e inteligente chamado de Peste. Não que Artaud se interessasse em reconhecer beleza ou em “artistizar” a Peste (ou a catástrofe, de maneira mais ampla), mas em identificar e descrever as dinâmicas recíprocas pelas quais Peste e suas componentes (entre elas os seres humanos) agenciavam afetos e provocavam transformações. Sentimentos/emoções, sensações corporais, memórias, desejos, estados mentais, intuições… como isso tudo afetaria a Peste e seria afetado por ela? Como esses fatores colaborariam na criação das condições de hospitalidade para que a Peste despontasse? E se colocarmos essa questão para a atual pandemia de Covid-19? Neste caso, talvez coubesse pegar de empréstimo das Artes suas ferramentas analíticas e considerar, por exemplo, o projeto de comunicação do Governo Federal do Brasil, em especial na figura de seu “comandante supremo”, o presidente, como uma performance em vários atos, ou uma temporada de reality show. Na prática, há muitas semelhanças entre a construção de um roteiro para um reality show e para um projeto de comunicação, como técnicas para manter a atenção e o interesse.

A confusão e a perplexidade causadas por sucessivas e cumulativas declarações e desdeclarações, indiretas, xingamentos, ameaças e mentiras do presidente do Brasil, não seriam entendidas como um resíduo e sim como um objetivo (o caso do gabinete do ódio parece mais evidente). Mas seria necessário ir além e analisar outros projetos neoliberais relacionados direta ou indiretamente à Covid, quiçá muito mais dispersos entre territórios e agentes, e com efeitos estéticos menos intencionais (ou mesmo não-intencionais) e menos precisos. Quais afetos são agenciados pela demanda incessante por atenção e engajamento, pelas cobranças por autoempreendedorismo e desempenho, pela aceleração da aceleração, pelas exigências de tecnologizar os próprios corpos para manter o ritmo e evitar o destino dos excluídos e perdedores? Quais afetos são agenciados pelas dinâmicas de comoditização da vida pessoal, pelos modos de subjetivação online indissociáveis da vigilância perpétua e retroativa, pela construção de uma autoimagem que é ao mesmo tempo a expressão da identidade íntima e um cartão de visitas, pela dedicação contínua à reputação construída a cada interação? Como nos afeta a perda da autonomia administrativa de nossas cidades face às tecnologias smart baseadas em dados e estatística algorítmica, que em última análise nos querem governar por sensores e dispositivos? Como nossa criatividade se transforma à medida que só podemos resolver nossos problemas a partir de dispositivos e plataformas digitais, amiúde proprietárias? O que acontece com nossa memória e nossa inteligência, enquanto elas são terceirizadas (alguns diriam ampliadas) pelas nuvens? Como nos afeta o afunilamento das perspectivas de trabalho e sua precarização algorítmica? Como nos atingem as narrativas de fé no progresso e na tecnologia, as quais separam a nós, humanos, de todo o resto da existência, e preconizam a necessidade de abandonar não apenas nosso corpo biológico mas todo o planeta Terra? Finalmente, como nos afetam a crescente incerteza quanto a haver ou não um futuro, a ameaça de catástrofe iminente, e os cenários distópicos, em grande parte sugeridos pela atual crise climática? Era nisso que Artaud estava interessado há 80 anos, quando pensou a Peste.

A dimensão estética não é um resíduo das tecnologias, muito pelo contrário, é um de seus pilares fundamentais, mesmo quando não planejada. A aceleração da aceleração, por exemplo, inscrita nos updates em tempo real e nos ciclos espiralados de consumo, demanda performances maquínicas de forças biológicas e torna raras e indesejáveis as ocasiões de hesitação, fundamentais para todos os processos em que ocorrem respirações. Proatividade, empreendedorismo e positividade são valores que combinam bem com o mundo 24/7, em que o maior problema é como evitar o sono e os períodos de não atividade e não consumo. Permanecemos em modo de emergência, em estado de exceção, sempre atentos, sempre ativos, custe o que custar ao corpo e à mente. Ter os afetos em primeiro plano no desenvolvimento das tecnologias, junto às questões materiais, técnicas e lógicas, pode nos aproximar de cenários diferentes, nos quais seja inconcebível que a suposta inevitabilidade de alguma tecnologia ou uma crise nervosa do mercado precarize e ameace as vidas da maneira como acontece hoje. Neste caso, alguns dos afetos atuais relacionados ao nosso plano macro-político-social-tecnológico — medo, incerteza, confusão, desapreço pela vida, desesperança, depressão etc — não seriam tomados como efeito colateral, e sim como defeito de projeto. Um projeto que agencia estes afetos seria resultado da incompetência dos “responsáveis” e “especialistas” que o elaboraram, ou pior, seria uma tentativa deliberada de agredir as pessoas a quem se destina. Se Artaud estivesse por aqui para escrever a partir da pandemia, certamente relacionaria esta gigantesca tentativa de codificar, simplificar, acelerar e otimizar o mundo (os valores básicos da tecnologia contemporânea) aos distúrbios mentais e emocionais cada vez mais abundantes nos grandes centros urbanos (transtorno de hiperatividade e déficit de atenção, síndrome de burnout, depressão, transtorno bipolar, crise de pânico…). Afinal, como ele escrevia: “por isso, uma sociedade infecta inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas, cujas faculdades de adivinhação a incomodavam”. Mas como ele não está, melhor nos encarregarmos de fazer esta aproximação e incluir na cartografia sobre a Covid-19 a sua estética, quais afetos ela agencia em nós, e, talvez mais importante, quais são os afetos indispensáveis para criar as condições de hospitalidade para que ela se manifeste como pandemia.

Link Revista PIMENTALAB: https://www.pimentalab.net/revista-pimentalab-n-1-e-isso-o-futuro/