Ensaio de Wilver Portella
O crescente uso da informática e das tecnologias no mundo surge na perspectiva de potencializar as atividades dos sujeitos, um projeto de uso da informação e comunicação que se inicia em algum lugar da segunda metade do século XX. Essa perspectiva otimista não traçou um caminho linear, claro e objetivo ao local que nos encontramos hoje, como se poderia imaginar. Contudo, existiam propósitos que deveriam pavimentar uma rota e deles nasceram séries de tentativas, avanços e atropelamentos os quais nos trouxeram a um patamar que não é mais tão somente calcado pelo aspecto tecnológico e imaginário, mas assume interfaces políticas e sociais na relação com os indivíduos.
As pesquisas e os trabalhos na área da tecnologia estavam envoltos em um idealismo otimista em torno de uma liberalização da vida dos sujeitos, se pensava em uma sociedade utópica, sustentada por um lado pelas ideias de ficções científicas e por outros os avanços e descobertas da medicina. Contudo, todas essas inovações trouxeram em seu bojo mudanças a nível psicológico nas coletividades, criando atores sociais diferentes dos que existiam quando todos esses princípios se estabeleceram.
A ideia de um indivíduo que é formado de fora para dentro, ou seja, tem sua subjetividade pautada pela socialização e pela vigilância nestes processos modernos já foi considerada por muitos autores. Contudo, essas ponderações sobre as formações sempre consideram sujeitos individuais, ou seja, totais e formados para se encaixar em uma parte dos processos produtivos da sociedade, como um construto, engrenagem parte de uma máquina de produção social da modernidade. O que Rodrigues (2019) nos traz é a imagem de um indivíduo que já não é mais indivisível em nenhuma dimensão, biológica, psicológica ou social.
No capítulo 11 de As Palavras nas coisas: saber, poder e subjetivação entre algoritmos e biomoléculas (2019), o autor retrata e define os conceitos de dividual e como opera a subjetivação de uma maneira diferenciada e nova em relação à alternativa que existia até então, que eram análises das maneiras de socialização a partir das propriedades sociais dos indivíduos e seus espaços de circulação. Seguindo o que Deleuze trás em suas obras, na medida em que junta pontas soltas deixadas por Foucault para uma compreensão da modernidade.
A noção de dividual para Rodrigues, parte da ideia de um duplo informático, mas este duplo não se trata exatamente de um espelho ou cópia exata, mas uma multiplicação desse indivíduo pela fragmentação e separação desses dados dissociados reaglomerados em massas informacionais densas, que, mais tarde, deve retornar ao sujeito do qual supostamente provem (p.452).
O dividual, portanto, seria essa mediação entre esses processos estatísticos de análise de dados massivos, e o retorno a esse indivíduo, mas de forma diferente da inicial. Contudo, o autor cita Robert Willians em sua visão de que esses indivíduos perdem suas auras de identificação porque suas individualidades (selfs) podem ser classificados, e manipulados, pelos mesmos dados que acreditam servir para a personalização no atendimento de suas necessidades individuais. Disso se desprende, segundo Rodrigues, que os atores sociais não são mais indivíduos no reino da informação, somos fragmentos particionados de informações que são aglomerados a um todo, e nos são retornados ao final do processo. Contudo essa recomposição será produto desse processo de dividuação, e na medida em que se torna uma forma de existência absoluta, a dividuação estaria substituindo os indivíduos, comenta Rodrigues em relação a proposta de Lucien Sfez.
As pessoas ofereceriam de bom grado essas informações na configuração e formação de seu perfil “duplo”, esse perfil figura, ao mesmo tempo, como uma “tecnologia do self” (p.459) para o indivíduo, que se desdobra em um sistema de previsão de comportamentos, que são processados pelos algoritmos, do qual o ator social espera um conhecimento acima do que ele mesmo tem de sua própria existência, singularidades e subjetividade, esses procedimentos, conforme coloca Rodrigues, são mais sutis e dinâmicos do que os processos de socialização anteriores.
Desse modo, o processo de dividuação tem a capacidade de modelar em boa medida a subjetividade dos agentes em relação aos seus próprios gostos. Esse processo se observa em uma série de outros mediadores da vivência através de aplicativos de celular e outras propostas de socialização virtual que trazem no bojo o mesmo processo de decomposição do indivíduo e recomposição de si a partir dessas mesmas sugestões sob a já comentada premissa de personalização. Tais processos de decomposição do indivíduo, dissolução numa miríade de outras dividualidades e a recomposto também colabora para a composição de subjetividades pautadas por uma coletividade construída pela objetividade dos instrumentos de medição estatística. Disso se desdobra a composição ainda mais forte de grupos reiterados em seus códigos e visões de mundo e de bem viver parciais. Esse duplo digital, recomposto, soa como uma recomposição de parte do indivíduo sem que seja ainda parte do eu (RODRIGUES; 2012; p.459).
É inevitável pensar em outras teorias sociológicas que avaliam a composição da formação de grupos sociais e suas táticas de distinção em torno de muitos traços. Se o conceito de habitus, cunhado por Bourdieu como estruturas estruturantes estruturadas e absorvidas pelos indivíduos como um código para ação, qual seria a diferença entre o que postula Rodrigues em sua análise do dividual, dado que ambos falam da composição dos aspectos “individuais” que ligam os agentes a outros agentes pela identificação?
A diferença entre as duas propostas de socialização está na perspectiva material de vivência desses códigos e/ou estruturas, ou seja, as trocas entre grupos estão, de alguma maneira, socialmente situadas no caso da socialização e do habitus, enquanto no dividual esses encontros e trocas só existem por meio das propriedades dividuais dos agentes, e dessa circulação do duplo dentro de uma “bolha” dotada de certas propriedades sociais que não encontra realização no mundo real.
Esse duplo, na medida que retorna ao indivíduo, produz um deslocamento em direção a estes espaços sociais, ou seja, uma reconstituição do gosto de classe desconectado da classe, e a formação de uma bolha que, apesar de ancorada nos aspectos materiais da realidade, contribui para reforçar um gosto de classe descolado dos aspectos materiais do mundo.
Isso corrobora para o deslocamento (e descolamento) das vivências, composição de visões de mundo e os traços singulares que compõe o indivíduo, o que por sua vez se desdobra em comportamentos também nos espaços políticos e econômicos. O indivíduo se torna cada vez menos senhor da concepção de si enquanto relega isso ao algoritmo, que o reconstrói nessa mediação com um outro “irreal”.
Ainda que se possa argumentar que isso, em boa medida, se dê no aspecto do consumo cultural e formação do gosto neste sentido, é fundamental ter em mente que a cultura é carregada de uma série de signos, símbolos, de discursos e diálogos em suas diversas possibilidades de existência, que é o passo de translação do dividual para o processo de subjetivação do individual. Disso se desdobra que, ainda que exista o reconhecimento de si em alguma medida, este só se dá pela reprodução dos conteúdos massificados que chegam ao sujeito por via de “suas preferências”, que trazem consigo um conjunto de valores e aspectos culturais reiterados amplamente.
Ironicamente na era da individualidade elevada a sua máxima potência quando vemos o deslocamento do eu para uma perspectiva ainda menor, dividual, também é o momento em que o fluxo comunicacional da humanidade nunca foi tão grande. A comunicação se torna indireta, os encontros se tornam encontros de posições dividuais, na medida em que a intimidade se torna espetáculo e os espaços públicos se tornam “privados”, borrando a dimensão entre o indivíduo privado e público, essa dificuldade de divisão descaracteriza os sujeitos enquanto pessoas “desconectadas” deste referencial, o que gera a crise de interiores anunciada por Deleuze (Rodrigues; 2012; p.461).
Ao mesmo tempo, a subjetivação proposta pelos algoritmos não é neutra como se quer fazer crer. Ainda que a máquina possa “aprender” sua elaboração e seus critérios são definidos por seres humanos, a neutralidade aqui se estabelece sob patamares caros ao capitalismo no direcionamento dessas subjetividades e “individualidades” que se remontam nos agentes, de modo a capitalizar o recurso de época, como bem colocado por uma colega, a vivência de um “capitalismo de interação”. Neste contexto, o impulsionamento da subjetivação é na formatação de um sujeito que consome e busca, através de consumo, preencher os vazios que resultantes das desconexões de si através de diversas interações nos espaços capitalistas disponíveis para tanto, seja no mundo virtual, gerando mais dados que se traduzem em recursos para a dividuação e interação dos indivíduos ou nas atividades prescritas como “formas de bem viver” estabelecidas aos agentes conforme suas “bolhas virtuais” para que produzam mais dados à máquina e possam saciar suas necessidades de relevância social em nível pessoal.
Tal perspectiva parece inevitável e aglutinadora dos sujeitos em todas as dimensões, entre a cruz e a espada, como se diz. Se o indivíduo se nega a participar dos ritos sociais de dividuação (perfis em redes sociais, uso de aplicativos em voga, conhecer e reconhecer os signos e símbolos de seu tempo), isso é suficiente para colocá-lo à margem da sociedade, dificultando a satisfação de necessidades do mundo real, completamente descolada, como um emprego por exemplo. Mesmo dessa forma, esse indivíduo não estaria livre do sofrimento social imposto pelo processo de dividuação, já que também se encontra incapaz de encontrar espaço nessas sociedades. Por outro lado, ao escolher assumir-se enquanto “parte” e abrir mão daquilo que o constrói enquanto indivíduo, segue-se todo o drama aqui discutido.
A pergunta que resta é não sobre como fugir desses processos, mas se tal empresa é sequer possível. Rodrigues nos dá a chave estabelecida por Simondon para o entendimento da técnica . As formas de combate e enfrentamento dos processos de dividuação passariam pela compreensão daa técnica algorítmica, ou seja, abrir a caixa preta de funcionamento desses algoritmos e entender as relações que pautam nossas formas de comunicação na modernidade e do regime epistémico (ou ainda a forma de organização do mundo) que ordena esses processos.
A resistência passaria pela reconversão desta técnica em um uso “socialista”, que ainda não foi pensado, mas que possibilitaria a reconversão nestas ferramentas que hoje funcionam sob o princípio de geração de valor, capital e recursos em uma apropriação comunal. Ainda assim, como bem coloca o autor, essa perspectiva ainda não vislumbra nossos horizontes, resta-nos a escolha de Sofia da solidão menos dolorida na era da dividualidade.
Referêncicas Bibliográficas
RODRIGUES, Pablo Manolo. Las Palabras en las Cosas: Saber, poder y subjetivación entre algoritmos y biomoléculas. Editorial Cactus, Buenos Aires, 2019.
RODRIGUES, Pablo Manolo. Entrevista: Algoritmos y biomoléculas, 2020. Disponível em: https://www.tramadora.net/2020/05/15/algoritmos-y-biomoleculas/