Do protesto aos arranjos tecnopolíticos: recursividade e reticulação

 

Tomar as ruas, protestar e expressar nossa indignação é fundamental. Porém, pressionar os governos e as instituições já não parece ser suficiente para traduzir as reivindicações das ruas em novas políticas ou práticas institucionais. Essa crise não é exclusiva do Brasil, mas aqui a situação adquire formas e conteúdos específicos. E como em toda guerra, essa é também uma guerra de velocidades entre ecossistemas concorrentes. O assassinato da vereadora Marielle Franco não é apenas uma mensagem de ameaça a tod@s ativistas, é também uma tentativa de bloquear um caminho de ação política institucional (construção de mandatos populares, partidos e disputa eleitoral). É um crime racista, de gênero (feminicídio), de classe e contra todas as forças e pessoas que ela representava. Tudo parece indicar que o momento histórico exigirá uma multiplicidade de novas formas organizacionais, ferramentas, tecnologias e estratégias de luta. Não é esta ou aquela, mas a combinação de várias estratégias. Não se pode enfrentar o novo com velhas armas.

Como transformar a energia política das ruas em ganho organizacional e novas institucionalidades? Os limites de junho de 2013 e a forma de captura pelos poderes instituídos do potencial político da multidão deveria servir de lição. Diante das configurações políticas do pós-Golpe e dos protestos multitudinários contra a execução de Marielle essas questões retornam.

Entendo que seja muito importante disputar as eleições, as instituições etc. O assassinato de Marielle e de tantos outrx ativistas políticos no Brasil é uma clara resposta à ameaça que esta nova geração de lutadoras representa aos poderes instituídos. Ao mesmo tempo (e de forma complementar) é urgente imaginarmos e praticarmos outras formas de ação para além dessas que conhecemos e seguimos fazendo nos últimos 30 anos.

Acredita-se demasiadamente no poder discursivo e na capacidade da mobilização ideológica. Mas, o poder é sobretudo logístico, é maquínico, funcional, pragmático. Em nossas vidas o poder se inscreve e se realiza mediante dispositivos materiais-simbólicos, humanos e não-humanos. Nossas ações realizaram-se com técnicas e artefatos sociotécnicos. Militantes e ativistas poderiam conversar mais com xs arquitetxs, xs engenheirxs, xs físicxs, biólogxs, cientistas da computação, médicxs etc. É necessário investigar uma outra camada, transbordando do protesto em direção a experimentação prática (prototipagem). Isso não é novidade, muitos coletivos e comunidades já estão fazendo isso.

A criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. Também podemos citar algumas comunidades territoriais que desenvolvem formas de autogoverno sobre seus recursos e infraestruturas comuns (água, eletricidade ou da sua pequena horta). Certas ordens religiosas também são exemplos de tecnologias organizacionais capazes de criar economias de suporte e com infraestruturas (materiais e simbólicas) interdependentes. Não a toa, o controle de infraestruturas e serviços básicos pelo crime organizado em espaços da vida social coloca em funcionamento toda uma máquina social, com normas, modos de subjetivação e legitimação próprios. Em todos esses casos o problema de escala é atacado de outra forma, por reticulação.

Há duas noções que podem contribuir para a construção de novos arranjos sociotécnicos: recursividade e reticulação.

Recursividade: faço uma livre combinação desta propriedade da ciência da computação com a caracterização de Chris Kelty sobre as comunidades de software livre. Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.

Reticulação: da cristalografia e do pensamento de G.Simondon, mas também dos estudos de inovação em ciência e tecnologia. A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação.

Passar do protesto à criação de arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares significa encontrar formas de organização, práticas e tecnologias adequadas ao novo contexto, capazes de traduzir, mediar e atualizar certos valores através desses dispositivos, para que sua adesão e utilização se propague através de crescente estruturação. Diante das novas formas de exercício do poder quais são as nossas tecnologias de contra-poder? Como nos organizamos, como criamos novas relações de suporte entre nossas práticas, qual é nosso economia, como cuidamos de nossa saúde coletiva, quais são as infraestruturas necessárias e como assumimos controle sobre elas? Investigar a fundo os problemas que enfrentamos, construir estratégias para a criação desses dispositivos e dos pontos-obrigatórios-de-passagem é um ótimo programa de pesquisa-ação.

#Marielle&AndersonPresente!

3 comentários Adicione o seu

  1. polart disse:

    comentário de: Cristiano CRUZ, [18.03.18 12:54]

    Bem interessante, Henrique! Só não me fica claro se vc está assumindo duas coisas: 1) que as tecnologias recursivas permaneçam estáveis à medida que elas alteram seu meio-associado; 2) que é possível saberem-se de antemão os passos requeridos para se chegar à nova realidade sociotécnica por que sonhamos (ou lutamos). Parece-me que ambas as coisas seriam difíceis de serem sustentadas, por exemplo, pela mesma abordagem simondoniana e “ecológica” que vc está assumindo (e com a qual concordo profundamente). Alterar o meio-associado, de fato, implica, necessariamente, na adaptação “evolutiva” da própria tecnologia recursiva. Alterá-lo, ademais, não nos conduz a qualquer realidade ou estruturação passível de ser sabida previamente, uma vez que a alteração implicará rearranjo das forças e tecnologias em ação, o que pode – e usualmente o faz – reorientar todo o (eco)sistema.

  2. polart disse:

    Henrique, [18.03.18 14:16]
    [In reply to Cristiano CRUZ]

    Excelente colocação. Estou de acordo. Isso para o bem e para o mal, do contrário, teríamos uma perspectiva muito tecno-determinista do social. Veja, iniciativas de agroecologia surgem inicialmente como projetos de outro arranjo sociotecnico (producao-consumo-relacao com meio-ambiente…) alternativo ao modelo hegemonico. Ocorre que hoje há tambem grandes cadeias de produção agroecologica que, apesar de produzir alimentos “organicos”, o conjunto da cadeia adquire outros formatos, em parte contrários aos principios originais da agroecologia como sistema sociotecnico. O mesmo aconteceu com a energia solar. De fato, este é um problema interessante. Vejo duas possibilidades: 1. Reconhecer as limitações e o carater transitório de qualquer tecnologia social recursiva; 2. Tentar estabilizar algumas dessas tecnologias num determinado arranjo uma vez que elas adquiram certa configuração (penso por exemplo na idéia das tecnologias “conviviais” do Ilich. Mas enfim, no fundo, a coisa toda é muito incerta. Porém, ela não precisa ser definita. Se uma determinada tecnologia social recursiva “servir” numa determinada escala tempo-espacial para a resolução de um problema, eu já ficarei contente 😉

  3. polart disse:

    Juliana Andrade Andrade, [19.03.18 17:27]
    [In reply to Henrique]

    Li o texto e fiquei pensando nessa questão da ‘criação’ dos arranjos políticos e sociotécnicos recursivos e reticulares… na parte da criação em específico, nessa ‘tradução’ do que já existe realizando a conexão com o protesto mais ainda. Por exemplo, no caso da agroecologia… Pensando pelos atores aqui no Brasil e nas diferenças que parecem existir do que é a agroecologia no Brasil e do que é em outros lugares… Aqui me parece que ainda que não esteja fechada a multi-versidade (se fosse 2 versões tava fácil) do que é a agroecologia, aqui os movimentos sociais tem uma participação grande no que foram construções de redes e até de produção de políticas públicas (que penso que tem uma tecnologia de ganho de escala aí, mesmo que passe pelo governo, que é interessante investigar)… mas a escala em si não é uma preocupação tão direta nos trabalhos de agroeco aqui. Já nos EUA, onde a agroecologia é muito menos politizada, menos pensada como tecnologia de transformação e menos relacionada a outro projeto de sociedade e outras relações de trabalho como aqui, tem uma quantidade muito grande de trabalhos pensando a escala… e a possibilidade de transformação de grandes sistemas alimentares… e daí o uso de conceitos para abordar a agroecologia cada vez mais amplos… Daí que percebi que há uma controvérsia interessante apesar do espectro amplo do que é tecnologia que elabora o debate em termos da possibilidade de organizar a própria agroecologia em ter

    Juliana Andrade Andrade, [19.03.18 17:30]
    apesar dessa controvérsia ampla do que é a agroecologia … tem essa questão da escala que marca bem a coisa. É visível pelos conceitos mais presentes e pela possibilidade de apropriação também… aqui os grupos tem mais recursos no que diz respeito ao modo como se define agroecologia de criar resistências a certas apropriações… mas não me parece o caso da américa do norte por exemplo…

    Juliana Andrade Andrade, [19.03.18 17:31]
    pensando nessa sobreposição que agroecologia aqui faz entre ciência e movimento social…

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