O poder é logístico


 

O poder é logístico, bloqueemos tudo  [1]

O poder é a própria organização deste mundo, este mundo preparado, configurado, designado. Aí está o segredo, de que não há segredo nenhum. O poder é agora imanente à vida, tal como a vida é agora organizada tecnologicamente e mercantilmente…Determina a disposição do espaço, governa os meios e os ambientes, administra as coisas, gere os acessos – governa os homens.

Quem quiser empreender o que quer que seja contra o mundo existente tem que partir daí: a verdadeira estrutura do poder é a organização material, tecnológica, física deste mundo. O governo já não está no governo.

O poder é agora a ordem mesma das coisas, e a polícia está encarregue de a defender.

Como contestar uma ordem que não se formula, que se constrói passo a passo e sem palavra. Uma ordem que se incorporou nos próprios objetos da vida quotidiana. Uma ordem cuja constituição política é a sua constituição material.

Daí a alegria que se agarra a qualquer comuna. Repentinamente, a vida deixa de estar recortada em pedaços conectados. Dormir, lutar, comer, curar-se, festejar, conspirar, debater, provêm de um mesmo movimento vital. Nada está organizado, tudo se organiza. A diferença é notável. Um apela à gestão, o outro à atenção – disposições em todos os pontos incompatíveis.

Quem diz infraestrutura diz que a vida foi desligada das suas condições. Que colocaram condições à vida. Que esta depende de fatores sobre os quais já não tem controlo. Que perdeu o pé. As infraestruturas organizam uma vida suspendida, uma vida sacrificável, à mercê de quem as gere.

O que constitui a força estratégica das insurreições, a sua capacidade de destruir a infraestrutura do adversário de forma duradoura é, justamente, o seu nível de auto-organização da vida comum.

Bloquear estes fluxos era abrir a situação. A ocupação era imediatamente bloqueio.

De resto, não se deve falar mais em fábricas, mas de locais, locais de produção. A diferença entre a fábrica e o local é que uma fábrica é uma concentração de operários, de saber-fazer, de matérias- -primas, de stocks; um local é apenas um nó num mapa de fluxos produtivos.

Atacar fisicamente esses fluxos, em qualquer ponto, é assim atacar politicamente o sistema na sua totalidade. Se o sujeito da greve era a classe operária, o do bloqueio é perfeitamente qualquer um. É não importa quem, qualquer um que decide bloquear – e assim tomar partido contra a presente organização do mundo.

Obcecados que somos por uma ideia política de revolução, negligenciámos a sua dimensão técnica. Uma perspetiva revolucionária já não tem que ver com a reorganização institucional da sociedade, mas com a configuração técnica dos mundos.

Trata-se, enquanto tal, de uma linha traçada no presente, não uma imagem flutuante no futuro. Se queremos reaver uma perspetiva, teremos que reagrupar a constatação difusa de que este mundo não pode mais continuar desejando construir outro melhor. Pois este mundo mantém-se, antes de mais, por via da dependência material que faz de cada um, na sua simples sobrevivência, dependente do bom funcionamento geral da máquina social.

Teremos que dispor de um aprofundado conhecimento técnico da organização deste mundo: um conhecimento que permita, simultaneamente, colocar fora de uso as estruturas dominantes e reservar-nos o tempo necessário à organização de uma desconexão material e política do curso geral da catástrofe, desconexão que não seja assombrada pelo espectro da penúria, pela urgência da sobrevivência.

Temos de ir ao encontro, em todos os sectores, em todos os territórios que habitemos, daqueles que dispõem de conhecimentos técnicos estratégicos. É somente a partir daí que os movimentos ousarão verdadeiramente “bloquear tudo”. É somente a partir daí que se libertará a paixão de experimentar uma outra vida, paixão técnica em larga escala, que é como a inversão da situação de dependência tecnológica de todos.

Construir uma força revolucionária, nos dias de hoje, é justamente isso: articular todos os mundos e todas as técnicas revolucionariamente necessárias, agregar toda a inteligência técnica numa força histórica e não num sistema de governo.

Para uma força revolucionária, não faz sentido saber como bloquear a infraestrutura do adversário, se não se souber como a pôr a funcionar em seu proveito, caso seja necessário. Saber destruir o sistema tecnológico supõe experimentar e pôr em prática simultaneamente as técnicas que o tornam supérfluo.

A relação do homem com o mundo, visto que não releva de uma adequação natural, é essencialmente artificial, técnica, para falar grego.

E é bem por isso que não há essência humana genérica: porque só há técnicas particulares e cada técnica configura um mundo, materializando-se assim uma certa relação com este, uma determinada forma de vida. Não se “constrói” portanto uma forma de vida; não se faz mais do que incorporar técnicas, pelo exemplo, pelo exercício ou pela aprendizagem.

Também o carácter técnico do nosso mundo vivido só nos salta aos olhos em duas circunstâncias: na invenção e no “apagão”. É apenas quando assistimos a uma descoberta ou quando um elemento familiar acaba por faltar, partir-se ou não funcionar, que a ilusão de viver num mundo natural cede face à evidência contrária.

A dificuldade seguinte que se nos coloca é esta: como construir uma força que não seja uma organização?

Este falso problema assenta sobre um cegueira, uma incapacidade para apreender as formas de organização que se escondem, de maneira subjacente, em tudo o que chamamos “espontâneo”.

As verdadeiras formas são imanentes à vida e só se apreendem quando em movimento

A atenção e a disciplina de que falamos aplicam-se à potência, ao seu estado e ao seu crescimento. Elas espreitam os sinais daquilo que a principia, adivinham o que a faz crescer. A disciplina verdadeira não tem por objeto os sinais exteriores da organização mas o desenvolvimento interior da potência.

Nota [1]: enquanto organizo o programa da próxima disciplina a ser oferecida na pós-graduação das Ciências Sociais da EFLCH (no segundo semestre de 2018), encontro textos que vêem bem a calhar neste momento. Acima, algumas notas do livro “Aos Amigos”, do Comitê Invisível