Cidades, territórios, ontologias, tecnopolíticas

por: Gilberto Vieira

Estamos experimentando um exercício interessante: como estudar as cidades a partir de uma ontologia política? Mais ainda: como viver nos centros das megacidades do sul global, tão marcadas pelas violências coloniais, sem nos conectar com outras formas de pensar e experienciar os territórios que habitamos? Os arranjos tecnológicos que definem essas territorialidades urbanas serão capazes de oferecer realidades múltiplas, assim como são as comunidades em que vivemos?

Me permito fazer um pequeno preâmbulo para abrir o debate sobre os conceitos de território e como temos nos relacionado com ele. Logo depois vou conectando conceitos e ideias apresentadas por Rodrigo Firmino (2020) e Angotti, Sbarra, Rheingantz e Pedro (2017). Este texto faz parte das discussões levantadas em um dos encontros propostos pelo professor Henrique Parra na disciplina Tecnopolíticas: ciência e tecnologias na construção de mundos, oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo no primeiro semestre de 2021.

Território usado

Ana Clara Torres Ribeiro (2010) ajuda a tecer uma rede de representações do conceito de território a partir de seus usos e a partir das referências teóricas de Milton Santos. Para Ribeiro (2010), há, no presente, um excesso de referências ao território:

“Impressiona como tudo agora é transformado em território, incluindo a conjugação de arte e cotidiano. Também as políticas públicas têm sido traçadas através do território, tomado como uma espécie de tradução operacional das estruturas e das desigualdades sociais” (Ribeiro, 2010, p. 26).

O que Ribeiro quer dizer é que essa noção difundida do território, que se abate sobre especialistas e gestores urbanos, exclui, na maioria das vezes, o fato de que se trata de uma questão de poder, onde a dinâmica entre abundância e escassez, técnica e ação, espaço e tempo, coisas e práticas sociais não é bem distribuída. Muito pelo contrário: o que se vê são ações estratégicas (na maioria das vezes empreendidas pelo Estado e pelas grandes corporações), que isolam o território e associam a sociedade ao imediatamente visível no recorte do espaço. 

Daí a necessidade de valorizar o conceito de “território usado” proposto por Santos (Santos, 2000): “um território usado obriga que nele sejam pensadas práticas sociais; ele é sim um recorte do espaço físico, mas implica, para ser uma categoria relacional, na reflexão das práticas sociais” (Ribeiro, 2010). É como se essa noção demandasse observações relacionais, em que os sujeitos estão atravessados pelo território e este, por sua vez, é construído a partir das disposições dos sujeitos. Almeida e Nakano (2011) sugerem que é possível tomar o conceito de território como sujeito cultural, que fala através de suas paisagens, que informa sobre o seu processo de humanização, que interfere na identidade, que tem profundeza histórica e camadas de historicidade. O território usado valoriza a vida de relações.

Tecnopolíticas urbanas

Essa noção de território usado é capaz de reduzir um risco grave à análise das cidades e suas tecnopolíticas: o risco do determinismo tecnológico que achata as relações sociais e supõe que “as tecnologias têm uma lógica funcional autônoma, que pode ser explicada sem se fazer referência à sociedade” (Freenberg, 1991). Ela também se aproxima do modo como Angotti et al. olham para as cidades e os agenciamentos tecnopolíticos urbanos. Para eles é preciso entender a realidade como múltipla, numa perspectiva ontológico-política que possibilite “visualizar, operar ou tecer as múltiplas realidades urbanas com o auxílio de dispositivos tecnológicos”.  Esta parece ser uma perspectiva comum nos estudos sociais mas ainda está distante dos paradigmas que guiam os estudos urbanos. Estamos nos “distanciando de abordagens cujo conhecimento está centrado apenas no objeto, enfatizando seu caráter técnico ou funcionalista.” (Angotti et al, 2017)

Para os autores é possível qualificar até os lugares e edifícios das cidades como quase-tecnologias: Ao mesmo tempo em que têm localização e forma estável, podem acolher diferentes atividades, além de serem transformados por seus usuários (Guggenheim, 2010). São os territórios usados de Milton Santos. São as territorialidades que vamos criando como habitantes das cidades que se alteram de acordo com nossos movimentos sociais, técnicos, políticos. Em Território Viral, Firmino (2020) propõe que um dos impactos marcantes da pandemia global que vivemos com a chegada do coronavírus, foi o surgimento de uma nova territorialidade viral. Na verdade esse território não surge, ele se hibridiza, se transforma, se ressignifica a partir de outras experiências históricas. É um processo de de-re-territorialização (Haesbaert, 2007), “ou processos de constantes redefinições de fronteiras e disputas de poder na constituição de territórios. Isso se dá a despeito de limites consolidados, tensionando as relações que definem os espaços geopolíticos atuais.” (Firmino, 2020)

Firmino dá exemplos de territórios que desaparecem, se estabelecem ou se reconfiguram neste momento pandêmico de profundas incertezas: os estádios de futebol transformados em hospitais de campanha, os decretos de restrição de circulação nas praias e parques, o fechamento temporário do comércio. Vamos além: os apartamentos da classe média transformados em escritórios de home office, as salas de teleconferência e os aplicativos de chat que se tornaram os territórios de aulas, reuniões, compras, sexo. E ainda os hospitais lotados e divididos por alas determinadas pelo vírus, os ônibus e trens lotados de trabalhadores, as áreas de serviço dos apartamentos ocupadas pelas profissionais domésticas que seguem trabalhando, os capacetes dos mototaxistas das favelas. 

Segundo Firmino, essas definições de contenção, circulação, demarcações e acesso, determinam as diferentes possibilidades de configuração dos territórios do vírus. “O resultado é uma territorialidade seletiva e racista. O território viral dos negros e dos pobres é diferente do território viral dos brancos e dos ricos.” Baco Exu do Blues, jovem rapper em ascensão no Brasil, fez de seu apartamento território-estúdio para a gravação de um disco inteiro produzido na pandemia. Uma das canções diz: Cê quer ouvir a voz de Deus? Então vá ao Nordeste e escute o povo / Bote o ouvido na terra e escute o mundo / Coronavírus me lembra a escravidão / Brancos de fora vindo e fodendo com tudo. Acredito que essas são ontologias políticas possíveis, das quais falam Angotti et al. 

Diferentes ontologias podem legitimar formas mais diversas de ocupação dos espaços urbanos e na conformação de territorialidades mais plurais. No entanto, falta aos urbanistas, gestores, teóricos, reconhecer as práticas cotidianas como elemento norteador de seus projetos urbanísticos. “Fazer proliferar as vozes dos grupos locais e suas diferentes versões sobre necessidades, negociações e, também, processos de resistência implica transformar o processo de planejar a cidade, ainda fortemente inspirado na visão de urbanistas, arquitetos e especialistas” (Agnotti et al, 2017). Nas discussões que temos enfrentado, esse reconhecimento é urgente e parece vir de uma disputa ainda muito desigual onde mulheres e homens racializados, moradores de favelas e periferias, indígenas e LGBTQIA+ ainda enfrentam uma infinidade de obstáculos para acessar espaços de poder. Esses sujeitos parecem ser pontas de lança de um movimento libertador, principalmente no sul global, onde as cidades seguem modelos importados que pouco, ou nada tem a ver com as práticas cotidianas, com os “modos de usar” (Certeau, 2014) e ocupar os espaços urbanos.

As relações (e tensões) de poder estão cada vez mais acentuadas se inseridas nessas novas ontologias que consideram as relações construídas cotidianamente entre homem e objeto. As definições (e contradições) dos territórios virais de Firmino são um exemplo claro dessas disputas. Quando trazemos as tecnologias para o centro dessas territorialidades, o debate se expande ainda mais. 

É o que viemos discutindo até aqui no campo das tecnopolíticas urbanas. Entre capitalismos de vigilância (Zuboff, 2015), concentração de capital (West, 2017) e colonização de dados (Couldry e Mejias, 2019), o encontro das tecnologias com as cidades evidencia forças verticalizadas que reduzem a capacidade de agência de seus atores mais diversos. Será possível imaginar cidades menos opressoras? Segundo Agnotti et al, ao incorporar os não humanos ao conjunto de atores da vida urbana, buscamos diluir as fronteiras entre sujeito e objeto e “[…] começamos a tarefa de repovoar a cidade com todas aquelas entidades que foram apagadas por uma abordagem convencional” (AMIN; THRIFT, 2002). Fernanda Bruno (2020) acredita que os cidadãos das cidades globais e conectadas, personagens que encarnam a urgência vital das conexões digitais, podem mobilizar uma outra imaginação sociotécnica e um cuidado coletivo com o ecossistema digital onde agora radicalmente vivemos.

Será?

Referências

ALMEIDA, Elmir de; NAKANO, Marilena. Jovens, territórios e práticas educativas. Revista Teias, São Paulo, v. 12, n. 26, 2011.

ANGOTTI, F. B.; SBARRA, M. H.; RHEINGANTZ, P. A.; PEDRO, R. M. L. R. A cidade na perspectiva sociotécnica: ontologias políticas, agenciamentos urbanos e lugares híbridos. V!RUS, São Carlos, n. 14, 2017. Disponível aqui.

BRUNO, Fernanda (2020). Vigilância digital, hiperconexão e pandemia. In série Lavits_Covid-19, 14, 28/07/2020. Disponível aqui. 

COULDRY, Nick, e ULISES, A. Mejias. 2019. The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism. California: Stanford, 2019.

FIRMINO, Rodrigo. Território Viral. Lab404: Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço. UFBA, 2020. Disponível aqui.

FEENBERG, Andrew. Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia. In. A Teoria Crítica da Tecnologia de Feenberg. Disponível aqui.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Territórios da sociedade: por uma cartografia da ação. In: SILVA, Catia Antonia da. Território e ação social: sentidos da apropriação urbana. Rio de Janeiro: Lamparina/FAPERJ, 2010.

WEST, Sarah Myers. 2017. “Data capitalism: Redefining the logics of surveillance and privacy.” Business & Society 58 (1): 20–41.

ZUBOFF, Soshana. Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization, Journal of Information Technology, v. 30, 2015, p. 75-89. (N. E.)