Da interioridade à identidade performada – horizontes das formas de subjetivação maquínicas

Imagem de Viktor Crookdlg: https://www.artstation.com/artwork/2L3yx

Ensaio de Daniel Shinzato de Queiroz

Esse artigo pretende discutir de que maneiras as formas de subjetivação vêm se alterando na atualidade, na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Para isso, aborda a passagem de formas de subjetivação baseadas em uma interioridade privada para uma identidade performada e alterdirigida constituída por dados e agenciamentos maquínicos.

SOCIEDADE DISCIPLINAR E PANÓPTICO

A sociedade disciplinar, para Foucault, é o regime de poder que surge a partir do fim do século XVIII, com o capitalismo ascendendo e desenvolvendo instituições de confinamento como fábricas, hospitais, prisões e escolas, que delimitavam tempo, espaço e ações dos indivíduos de forma a intensificar sua performance e produtividade através do adestramento dos corpos. Eram necessários corpos dóceis e úteis para um capitalismo em que as forças de produção eram fator fundamental.

Ela impõe condutas através da vigilância e da normatização, definida pela utilização da estatística, ciência do Estado por excelência, que passa a governar tanto ao nível da população (outro conceito que aparece a partir desse momento) como do indivíduo. É o tempo dos primeiros levantamentos demográficos, taxas de natalidade e mortalidade, projetos de saúde pública e habitação, controle de migração, entre outros relevantes para o capital produtivo, que dependia da quantidade e força dos seus trabalhadores.

Essa sociedade baseada em separar, vigiar, punir e enclausurar produzia discursos sobre a regra natural, ou normal. Trabalhava assim a partir do conhecimento da “curva normal” estatística, régua pela qual eram medidos comportamentos e características dos indivíduos, que não deviam dela se desviar.

Seu ideal poderia ser resumido pela bem conhecida ideia do panóptico, arquitetura de vigilância de presídios desenvolvida por Jeremy Bentham. Nela, uma torre central é o posto de observação do vigia, que pode observar todos os presidiários dispostos na construção em forma de anel ao seu redor, com diversas celas individuais1. O modelo do panóptico se multiplicou e foi replicado em exemplos diversos, como salas de aula com o professor na frente, em um patamar mais elevado; nas portas com janelas para observação e na arquitetura dos banheiros coletivos, cujas portas das cabines privativas não vão até o chão.

A efetividade dessa forma de vigilância é maior pois os vigiados não têm certeza se estão sendo observados, as pessoas internalizam a disciplina e aumenta a autovigilância, o que cria ou hiperdimensiona esse espaço interior e introspectivo.

INTROSPECÇÃO E VERDADE INTERIOR

Paula Sibilia2 observa que essa “hermenêutica sobre si” já existia em Santo Agostinho, chamado de “pai da interioridade” pelo valor conferido à essa auto exploração interior como caminho para Deus e para a verdade (embora pensasse em uma chave muito diferente da noção de “eu” atual) e em Descartes, que o deslocou para uma centralidade do humano na introspecção que já não busca Deus, mas si mesmo. A autora ainda faz uma referência à importância de Lutero, ao pregar a leitura e interpretação individual da Bíblia e da própria cultura de leitura e escrita para a formação desse espaço de produção subjetiva, para a “coagulação da interioridade como aquele lugar misterioso, rico e sombrio, localizado ‘dentro de nós’” (SIBILIA, 2004, p. 07).

Práticas como se confessar para o padre na igreja, escrever um diário pessoal ou ser analisado por um psicanalista se constituíram dentro desse regime, que considerava a identidade como algo único, privado e irrepetível, que deveria ser protegido dos olhares externos onde reinava a aparência. Esse espaço íntimo da verdade interior se contrapunha às ações públicas, que respondiam às demandas disciplinares.

Toda a dinâmica libidinal proposta por Freud e seu revolucionário conceito de inconsciente estão assentados na repressão por regras sociais e na riqueza desse espaço interior, que deveria ser esmiuçado a fim de encontrar uma verdade interior do sujeito – muito se falou sobre a influência teológica do “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” na psicanálise.

SOCIEDADE DE CONTROLE, DO INDIVÍDUO AO DIVÍDUO

As instituições desenvolvidas pelo poder disciplinar (família, fábrica, hospital, prisão, escola) começam a apresentar sinais de crise a partir das transformações no modo de funcionamento do capitalismo, que passa a ser de sobreprodução. Essa passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle é analisada por Deleuze em um texto curto, de maio de 19903. Nele, observa que embora não se pare de falar na importância de reformas nessas instituições, elas estariam condenadas a agonizar até que as novas forças que se anunciavam se instalem. Podemos perceber essas novas configurações nas penas substitutivas e tornozeleiras eletrônicas substituindo o confinamento presidiário, hospitais-dia e estratégias de saúde da família no lugar de internações em manicômios, aplicativos de monitoramento de dados corporais para exercícios físicos e saúde, cruzamento de dados da polícia em aplicativos de relacionamento (o Tinder já oferece um plano em que é possível levantar a ficha criminal relacionada à abuso e violência contra mulheres do possível parceiro) e na necessidade infinita de ensino continuado, fundamental para um estágio de capitalismo virtualizado, que precisa capturar os fluxos produtivos e já abandonou o lastro em ouro, deixando de comprar matéria-prima para vender produtos manufaturados. Em suas palavras: “O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações (DELEUZE, 2013)”.

A sociedade de controle se caracterizaria por formas ultra rápidas de controle em espaços abertos (sistemas de GPS, compras debitadas automaticamente no cartão de crédito, acesso através de leitura de retinas etc), em oposição à duração de um sistema fechado da sociedade disciplinar. Não trabalha mais por palavras de ordem, mas por cifras, que funcionam como senhas.

Dois aspectos importantes da análise de Deleuze para esse artigo são o fato da sociedade de controle substituir a antiga polarização entre indivíduo/massa por divíduo/banco de dados e a substituição da moldagem de comportamentos pela modulação. O divíduo decompõe o indivíduo em “fatias” ou dados (sejam eles comportamentais, físicos ou relacionais) de forma a prever e modular ações futuras. Sobre o conceito de divíduo, Fernanda Bruno4 afirma que:

“O perfil é um conjunto de traços que não concerne a um indivíduo específico, mas sim expressa relações entre indivíduos, sendo mais interpessoal do que intrapessoal. O seu principal objetivo não é produzir um saber sobre um indivíduo identificável, mas usar um conjunto de informações pessoais para agir sobre similares. (…) [buscando] (…) a probabilidade de manifestação de um fator (comportamento, interesse, traço psicológico) num quadro de variáveis”.

MÁSCARAS E IDENTIDADES PERFORMADAS

Pablo Rodríguez aborda essa transformação de uma usina de subjetivação voltada para dentro de si da modernidade até as personalidades alterdirigidas5 do mundo atual. Num primeiro momento a visibilidade da Antiguidade, na qual muitos observavam poucos (o imperador, o rei) teria sido invertida pela visibilidade do panóptico (poucos ou nenhum observando muitos) e depois evoluído para o sinóptico, no qual muitos vigiam poucos (a cultura de celebridades e especialistas da era de comunicação de massa). A palavra “sinóptico” tem a mesma origem etimológica de “sinopse”, e remete à ideia de permitir ver de uma só vez as diversas partes de um conjunto – também é a designação dada aos três primeiros evangelhos do Novo Testamento (Mateus, Marcos e Lucas), que apresentam os mesmos fatos narrados por 3 apóstolos/observadores diferentes.

Pablo evita a crítica fácil sobre a banalização e superficialidade da cultura atual, ao utilizar o conceito de Erving Goffman de “máscara” social: “A máscara não é, então, algo que oculta; e o que é próprio do indivíduo não é possuir uma interioridade própria, irrepetível, e sim transformar-se em um ator a compor um personagem. Se o personagem se cumpre, segundo Goffman, terá construído um “si mesmo” (self )” (RODRÍGUEZ, 2018)6.

Para Goffman, a máscara seria o significado original da pessoa, por se aproximar ao máximo do que queremos performar, ao invés de encobrir uma suposta verdade interior, ideia corroborada por Fernanda Bruno: “no perfil existe um efeito de identidade, num sentido pontual e provisório, uma vez que não atende a critérios de verdade e falsidade, mas de performatividade” (…) a identidade é atuada”. (BRUNO, 2013)7.

Nesse sentido, é importante notar que a possibilidade de metrificar comportamentos (quantidades de likes em posts, alcance, compartilhamentos, hábitos de consumo etc) teve um efeito avassalador na modelização de comportamentos, assim como um certo efeito de controle dos discursos por grupos. Não cabe aqui julgar até que ponto o politicamente correto e cultura da lacração podem ter contribuído para o crescimento da extrema direita, que agiria como um “retorno do reprimido” ao se apropriar do ideal de liberdade, mas é certo que cada vez mais há uma responsabilização sobre todo discurso emitido e passível de ser printado ou armazenado em algum banco de dados mundo afora. São indícios disso os avisos de que “retweet não é endosso”, como forma de defesa e o surgimento de personagens como os “influenciadores”.

O DIVIDUAL PARA ALÉM DAS REDES SOCIAIS

É necessário aqui lembrar que, embora o próprio Mark Zuckerberg já tenha assumido que seu objetivo é fazer do Facebook a “matriz identitária” das pessoas, esse “perfil dividual” não se refere apenas às nossas identidades virtuais em redes sociais. O dividual diz respeito a todos nossos rastros e ações renderizadas, quaisquer dados, sejam músicas no Spotify, consumo de remédios em farmácias vendidos para seguradoras, tempo de leitura em páginas de internet ou em vitrines de lojas, percursos mapeados no Waze e até mesmo informações sobre os genes em testes de ancestralidade ou mapeamento cerebral como o Projeto Conectoma Humano.

A Universidade de Harvard e a Google acabam de anunciar que mapearam um milímetro cúbico e um córtex cerebral, organizando informação equivalente a 11 mil filmes em 4K (1,4 petabytes)8, e essa “codificação” da realidade orgânica (genes, sinapses, níveis de serotonina, batimentos cardíacos e abertura da retina mapeando emoções) e inorgânica (algoritmos, fluxos de produção e valorização monetária, análise de grafos linguísticos, previsão e modulação de comportamentos) borra os limites do que se entende por vida, corpo e realidade, temas vastos demais para as dimensões deste artigo.

Vale lembrar, no entanto, que a origem do conceito de “meme” veio de um biólogo, Richard Dawkins9, que em 1976 o pensou como algo análogo aos genes, uma unidade de informação que se replica de cérebro a cérebro ou outro local de armazenamento ou instância com a qual possa compor um agenciamento, se quisermos usar os termos de Deleuze e Guattari.

MENTES DE COLMÉIA E SUBJETIVIDADE MAQUÍNICA

Sabemos que esse processo de interação-homem-máquina está em andamento, embora a comunicação de cérebros e máquinas hoje em dia seja como uma conversa de dois supercomputadores ligados por um modem lento, como disse o gerente de neuroengenharia da agência de pesquisas do Pentágono, Phillip Alvelda. O aplicativo “Nervana” é apresentado como um modulador de ânimos, um fone de ouvido que ativa uma vibração e, em tese, ativa o nervo vago para a produção de dopamina. Ainda soa como ficção, mas as condições técnicas para criar um aparelho como esse que responda a dados corporais que identifiquem a tristeza ou depressão e “sintonizem” comportamentos estão dadas.

Shoshana Zuboff10 afirma que, se na era industrial o ideal era de uma mente organizada como uma máquina bem azeitada, agora o modelo é o de uma colméia com aprendizado de máquina. É preciso que o ser humano se torne mais parecido com as máquinas, ou ao menos entre em confluência com as políticas adotadas por elas. Ela apresenta dois exemplos: no primeiro, os carros autoguiados interconectados, que aprendem com os erros dos outros carros, ao contrário dos seres humanos, que normalmente precisam passar pela experiência do erro, sem nenhuma garantia de aprendizagem. Poderíamos encontrar algum paralelo no controle discursivo em redes sociais, com as reações contrárias e comentários agressivos servindo como forma de “pastorear” as condutas.

No segundo exemplo da autora, uma britadeira que tem como “política” inserida a necessidade de um certificado para manuseio dela. Se alguém sem essa formação se aproxima para utilizá-la ela soa um alarme, fazendo com que os trabalhadores ao redor se mobilizem para tirar o aparelho das mãos de quem estivesse ali. Esse exemplo mostra como a modelização de políticas de funcionamento e comportamento humanos confluem para uma uma ação coletiva em rede, compartilhando informações e

“operando em sincronia com a eficácia máxima para obter os mesmos resultados. Ação confluente significa que a “liberdade” de cada máquina individual se rende ao conhecimento compartilhado”. (ZUBOFF, 2021)

Para Lazzarato11, esse regime de servidão maquínica difere da sujeição social (que ainda operava em um nível basicamente consciente, a partir de signos carregados de sentido, como identidade, gênero, nacionalidade, formação). Na servidão maquínica o indivíduo é radicalmente desterritorializado, configurando o divíduo, esse vetor de agenciamentos pré-individuais ou supraindividuais.

Pensando na mineração de dados como forma de gestão de “fatias” do indivíduo (infraindividuais) para prever e modular comportamentos supraindividuais (outros perfis como você), poderíamos dizer que somos os mineradores e também a “Serra Pelada”.

Além do receio de uma dessubjetivação ou do “fim do indivíduo”, Rouvroy e Berns12 pensam numa rarefação dos processos de subjetivação, se os entendermos como originados de um sujeito que reflete sobre si mesmo (por esses processos serem gerados pelos próprios dados).

Enfim, a questão que se coloca é: a definição de humano tem fim ou é ampliada quando abrange esses níveis inorgânicos, a-significantes? Um sujeito definido por um corpo e uma identidade fixa voltada para processos internos certamente produz sensibilidades diferentes de uma alterdirigida e hiperconectada. Se sentíssemos tudo o que todos os humanos sentem (dores e delícias de ser o que somos) ainda seríamos humanos ou algo parecido com células de um gigantesco organismo/sistema informacional, entre orgânico e inorgânico? Voltamos à questão spinoziana de o que é e o que pode um corpo?

Encerro essa reflexão com um trecho do livro de Zuboff sobre a mente de colmeia pensando na imagem que Foucault faz do humano, a de um rosto de areia desaparecendo na beira do mar. Seremos o rosto ou seremos o mar?

“Todos estaremos a salvo na medida em que cada organismo funciona em harmonia com todos os outros organismos, menos como uma sociedade e mais como uma população que acompanha a maré, enchente e vazante, em perfeita e lubrificada confluência, moldada pelos meios de modificação comportamental que escapam da nossa consciência, e portanto não podem ser lamentados, e aos quais não podemos resistir.” (ZUBOFF, 2021).

BIBLIOGRAFIA:

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NOTAS

1A expressão “cela” em francês guarda a riqueza linguística de simbolizar “célula” também (do latim cella, que significa câmara).

2SIBILIA, P. Do homo psico-lógico ao homo tecno-lógico: A crise da interioridade. Semiosfera, Rio de Janeiro, v. 3, n. 7, 2004. apud BENEVIDES, P. S.; DIAS, A. J. S. e DUTRA, A. B.; “A interioridade psicológica face aos novos regimes de visibilidade”, Revista ECOS, ano 8, vol. 1.

3DELEUZE, G. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: ______. Conversações. 3. ed. Trad. PELBART, P. P. São Paulo: Editora 34, 2013.

4BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre-RS: Sulina, 2013.

5RIESMAN, D. A multidão solitária. 2a. ed. Perspectiva, 1995.

6RODRÍGUEZ, P.M. “Espetáculo do dividual: tecnologias do eu e vigilância distribuída nasredes sociais”, in BRUNO, F. (org.). “Tecnopolíticas da vigilância : perspectivas da margem, 1a. ed., São Paulo: Boitempo, 2018.

7BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre – RS: Sulina, 2013.

8ARBULU, R. “Parceria entre Google e Harvard mapeia um milímetro cúbico do cérebro humano”. In Olhar Digital, (02/0602021): https://olhardigital.com.br/2021/06/02/ciencia-e-espaco/parceria-google-harvard-cerebro/

9DAWKINS, R. O gene egoísta. 1a. ed. Cia das Letras, 2007.

10ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância – A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. 1a. ed. Rio de Janeiro-RJ: Intrínseca, 2021.

11LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. 1a. ed. Edições SESC, 2014.

12ROUVROIS, A.; BERNS, T. “Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação?” , in BRUNO, F. (org.), “Tecnopolíticas da vigilância : perspectivas da margem, 1a. ed., São Paulo: Boitempo, 2018.