Fonte foto: http://hp.coiote.org/henrique-parra/manifestacao/marcha-da-liberdade/
As recentes manifestações políticas nas ruas das capitais brasileiras estão suscitando interessantes debates. Dentre os novos atores que estão participando dessas ações trazendo outros elementos para prática e reflexão, destaca-se o Circuito Fora da Eixo. Espero em breve, num texto próprio, contribuir com algumas reflexões. Por hora, copio aqui dois artigos que exemplificam os debates.
O primeiro artigo – A esquerda fora do eixo – foi publicado como editorial no Passa Palavra [www.passapalavra.info].
Ele suscitou várias respostas. Entre elas, a que me parece mais interessante, foi o texto da Ivana Bentes – A Esquerda nos Eixos e novo ativismo – publicado no Trezentos [www.trezentos.blog.br].
Quando acabava de publicar este post, saiu a réplica do Passa Palavra – Domingo na Marcha (1ª parte)
Boa leitura!
Ivana Bentes Jun 22 11:15PM -0300
*Caros, aproveito para enviar esse texto do Sandro Fornazari que deixa claro
que as marchas da liberdade estão muito mais próximas da proposição (que vem com o Maio de 68!!!) da emergência das diferenças e minorias (negros,
feministas, periferias, homossexuais, etc.) do que do limitado conceito de
“lutas de classes”. abraços, Ivana
* Filosofia prática
Uma das noções norteadoras do pensamento político de Deleuze e Guattari é a
de que uma filosofia política que se preze, hoje, deve estar centrada na
análise do capitalismo e de seus desenvolvimentos. O interesse por Marx, por
parte dos autores de O anti-Édipo e Mil platôs, é a análise do capitalismo
como sistema imanente que se reproduz sempre em escala crescente,
incorporando inclusive as forças produtivas que se constituem,
originalmente, à sua margem e, no mais das vezes, em resistência a ele. Se
essa análise, contudo, desloca a si mesma em relação ao debate marxista, *é
porque soube criar novos conceitos para pensar a singularidade da
experiência política da Europa pós-68. *
Entre eles, o conceito de linha de fuga (ao invés de contradição) para
explicitar os movimentos constitutivos de cada sociedade para além dos
regimes jurídicos e institucionais que visam a uniformização e o regramento
da vida social. *
Além disso, o conceito de classe dá lugar ao de minoria, que não se define
pelo número, pois ela pode ser mais numerosa que uma maioria. A maioria se
apresenta como um modelo que procura se impor como norma, enquanto a minoria é antes um processo que uma adequação ao mesmo (modelo); a minoria é um devir-outro, uma ruptura com o mesmo e uma abertura para o novo enquanto processo de criação. *
Nesse sentido, pode-se perguntar se o Brasil contemporâneo não vive um
processo de esfacelamento dos modelos majoritários (o homem branco morador dos bairros não-periféricos das grandes cidades do Sul-Sudeste) *e por um intenso e múltiplo devir-minoritário: devir-negro, devir-mestiço,
devir-mulher, devir-homossexual, devir-nordestino, devir-índio,
devir-periferia, que vale para cada brasileiro que se vê arrastado por esses
caminhos de criação, que é também o caminho de criação de si como outro. *
O debate político que se propõe se define a partir de uma filosofia prática
e passa pela produção de sentido, antes que pela decifração do real.
Decifrar o real é encontrar o sentido como dado a priori que já comporta em
si um esquema de valores estabelecidos que justifica o real tal como ele é,
levando a esquivar-se diante da miséria, resignar-se diante do intolerável.
O que se propõe é um pensamento que, na apreensão mesma do intolerável,
responda enfaticamente através da produção de novos sentidos e valores, numa prática que renuncie a toda política de compromisso com os valores vigentes que resultam na imensa fabricação da miséria humana, material e espiritual. (…) *Assim, o pensamento se afirma enquanto prática imanente decorrente das forças da experiência vivida em sua singularidade: não há filosofia que não seja filosofia política.*
(*Sandro Kobol Fornazari)*
Mais elementos para o debate. Texto do Pablo Ortellado – http://www.gpopai.org/ortellado/2011/06/capitalismo-e-cultura-livre/
Capitalismo e cultura livre
A publicação do artigo “A esquerda fora do eixo” e sua repercussão são um fato a ser comemorado por duas razões: por publicizar um debate que estava acontecendo fora do espaço público e por trazer a primeiro plano algumas questões centrais da luta contemporânea. Gostaria de ressaltar o primeiro motivo, em particular, porque ele permite que o debate avance e bloqueia os efeitos nefastos da intriga e da difamação na qual a crítica se converte quando acontece apenas num circuito restrito em ambiente privado. Neste sentido, o Passa Palavra dá continuidade à missão do jornal O Combate com o qual mantém certa filiação histórica. O que não me parece muito de acordo com essa missão é a recusa em participar de um debate sugerido pelo Fora do Eixo com uma alegação que simplesmente desqualifica o adversário, colocando-o apressadamente e sem lhe dar voz, no campo do empresariado. Tenho sérias dúvidas se o coletivo do Passa Palavra tem elementos para fazer essa qualificação de maneira sustentada.
De todo modo, não gostaria de discutir o coletivo Fora do Eixo, não porque o assunto é sem interesse – muito pelo contrário – mas por que simplesmente tenho poucos elementos para contribuir com o debate e acho que a própria disposição do coletivo em responder é o ponto de partida mais adequado.
O que gostaria de fazer é responder a algumas afirmações e concepções do artigo no que diz respeito à constituição do campo da cultura livre e da relação entre a contracultura e a luta social. Acho que o artigo traz os elementos certos para o debate, mas nem sempre de maneira apropriada. Chamo a atenção para alguns pontos centrais:
* Em primeiro lugar, o artigo “A esquerda fora do eixo” sugere que o processo de constituição da cultura livre foi movido pelo empresariado: “A ideologia da cultura livre baseia-se na ideia de que a flexibilização da propriedade intelectual com a concorrência proporcionada pelo livre mercado pode estimular a criação e, nesse processo, democratizar a informação e assim as nações caminharem ao progresso. De fato, quanto maior a flexibilização da propriedade intelectual, maior a produtividade dos trabalhadores e, por isso, maior a produção de riqueza a ser apropriada e transformada em mercadoria. Em síntese, a cultura livre é a própria regra do jogo do capitalismo, a apropriação de algo que a classe capitalista não produz.” O que essa leitura deixa de levar em conta é precisamente a agência do processo que descreve. A plataforma da cultura livre não foi impulsionada pelas empresas, muito pelo contrário – ela foi e até hoje é fortemente resistida pelo grande capital que opera as chamadas indústrias culturais (do livro, da música e do audiovisual). Quem esteve impulsionando esse processo sempre, desde o começo, foram ativistas, alguns dos quais vindos do campo liberal (no sentido americano do termo) e outros do campo da esquerda, no sentido europeu (no seu espectro mais amplo). Os ativistas liberais queriam persuadir o empresariado de que havia possibilidades de negócio não exploradas e buscavam conciliar uma “modernização” da indústria cultural com a democratização do acesso à informação, já que haveria queda na barreira de preços dos produtos culturais. Os ativistas da esquerda enfatizavam o processo de desmercantilização da cultura e a constituição de formas coletivas de produção e distribuição da cultura que retomavam, em nova chave, experiências pré-capitalistas dos bens comuns (commons). O artigo aponta corretamente que houve uma “aliança política tática formada por um programa de oposição às transnacionais da cultura e os oligopólios culturais regionais”, mas está completamente equivocado ao afirmar que se ocultou “a reflexão crítica sobre o que há de surgir em seu lugar.” A discussão sobre as implicações políticas desta aliança anti-velha-indústria e de como lutar para que o processo de transformação em curso se oriente mais para a desmercantilização da cultura e menos para a modernização da indústria por meio de novos modelos de negócio foi o cerne dos debates de toda a esquerda que esteve envolvida no campo da cultura livre. O artigo também falha ao não ressaltar a agência do processo que foi movido por ativistas, contra uma indústria resistente e recalcitrante. Assim, não pode discutir as implicações teóricas e políticas que são a essência da interpretação autonomista da história de que as transformações estruturais do capitalismo são exógenas, frequentemente vindas da luta social.
* O segundo ponto que gostaria de comentar é a leitura classista da luta pela cultura livre. Eu compartilho com o Passa Palavra o diagnóstico geral de que a estrutura de classes da sociedade capitalista fordista foi (e, em certa medida, ainda é) tripartite e não binária. Ela tinha três classes: uma classe de proprietários cujos rendimentos advinham da rentabilidade da propriedade e que se reproduzia por meio da herança, uma classe de gestores profissionais que comandavam o processo produtivo e se reproduzia por meio do sistema de ensino superior e uma classe de trabalhadores despossuídos de propriedade e competência formal profissional. A distribuição das classes era muito variável de acordo com o papel que cada nação ocupava no sistema capitalista mundial, mas, para simplificar o argumento, tinha a estrutura típica 1:10:90. O elemento chave da organização desta estrutura, além da propriedade privada e do trabalho assalariado, era que a organização fordista separava a concepção da execução do trabalho e limitava o acesso às funções de concepção por meio do monopólio profissional. No entanto, há evidências muito sólidas e de muitas décadas de que essa estrutura está mudando: nas empresas, consolidam-se práticas de gestão pós-fordistas onde os trabalhadores recebem muitas (mas não todas) atribuições gerenciais e há uma ampliação do acesso ao ensino superior que, em alguns países, caminha para 40% da força de trabalho. Embora inconteste, essas transformações não têm linhas gerais completamente claras, na minha opinião. Algumas questões: qual o impacto das novas ocupações de nível superior para o sistema produtivo?; caminhamos para novos tipos de hierarquia na estrutura produtiva que não é mais determinada pelo acesso escasso às ocupações profissionais? quais?; essa delegação de tarefas gerenciais para os trabalhadores modificou efetivamente a natureza do trabalho produtivo cuja essência agora seria simbólica, como querem os autonomistas franco-italianos? (lembrando que, mesmo nos Estados Unidos, onde o processo está mais avançado, 60% da força de trabalho ainda manipula produtos e não símbolos e que esse crescimento americano pode ter tido como contrapartida a ampliação do trabalho industrial fordista nos países semi-periféricos); por que certos tipos de trabalho como o de telemarketing, no coração do setor de tecnologia de informação e comunicação, ainda se organizam de maneira fordista? Eu não conheço respostas satisfatórias para essas e outras questões, mas acho que devemos olhar para este mundo que se transforma e não para o mundo fordista que aos poucos desaparece.
* Por fim, gostaria de comentar as novas formas de luta que acompanham esse processo de transformação da estrutura de classes. Essas transformações da natureza do trabalho e da estrutura de classes começaram a ser sentidas claramente nos anos 1960 e, na minha opinião, estão claramente ligadas à emergência da contracultura, às novas demandas sociais características destes segmentos e a uma culturalização da luta social que vemos, para pegar casos extremos, no maio francês, nos yippies americanos e nos indiani metropolitani da Itália (no Brasil, por especificidades da conjuntura nacional, não veremos essa intersecção no tropicalismo). A drástica ampliação do ensino superior e a massificação das tecnologias de informação comunicação, “culturalizaram” as “camadas médias urbanas” o que repercutiu na forma de expressão das suas lutas, inclusive quando tiveram orientação anticapitalista. Nas lutas desses setores urbanos médios, assim, vagamente definidos, a expressão da luta tem uma dimensão cultural ineliminável e as demandas são crescentemente “pós-materiais” para usar um jargão sociológico. Como as lutas destes setores médios – tanto dos emergentes, como os do já consolidados – se articulam com a dos trabalhadores, inclusive com aqueles que ainda vivem no regime fordista, num cenário de rápida transformação é a questão em aberto a ser investigada. Não sei se a marcha da liberdade que o artigo discute dará frutos, mas o crescimento de mobilizações deste tipo – altamente culturalizadas e com os segmentos médios urbanos – são obviamente uma tendência marcante. Na verdade, no cenário atual, são a novidade mais distintiva para a qual os antagonistas do sistema capitalista deveriam voltar seus olhos. Por isso, quando texto ironiza a forma e o conteúdo deste tipo de luta (“os elementos da composição dessa nova elite passam pelo consumo e sustentação de novos habitus, como se deslocar para o trabalho de bicicleta ou a pé, reciclar seu lixo, cuidar de pequenas hortas em casa, consumo de orgânicos, baixar músicas e minutar os momentos do dia numa mídia social”), ressaltando a forma das lutas de meados do século passado, ele não ajuda a compreender o presente, nem a discernir as tendências do futuro. Nos anos 1860, Karl Marx viva num mundo predominantemente agrário, cuja maior parte da classe trabalhadora era camponesa. Ele não teorizou sobre a luta no campo, mas sobre o incipiente mundo industrial. Acho que ainda é a atitude adequada a seguir.