O poder por trás dos artefatos técnicos e o uso político das tecnologias

por Rosi Rosendo

A resposta que Langdon Winner dá à pergunta elaborada por ele no texto “Artefatos têm política?” é sim. Winner parte das reflexões de Lewis Mumford, historiador de ciência e tecnologia norte americano, que escreveu boa parte de sua obra no contexto da Guerra Fria, sob o risco iminente de uma guerra nuclear entre as grandes potências de então, Estados Unidos e União Soviética.

De acordo com Winner:

“[Há] duas formas pelas quais os artefatos podem conter propriedades políticas. Primeiro, são instâncias nas quais a invenção, projeto ou arranjo de um dispositivo técnico ou sistema específico se torna uma maneira de resolver uma questão dentre os afazeres de uma comunidade particular (…). Segundo, são casos daquilo que pode ser chamado de ‘tecnologias inerentemente políticas’: sistemas feitos pelo homem que parecem exigir ou ser fortemente compatíveis com tipos particulares de relações políticas. Argumentos sobre casos desse segundo tipo são muito mais problemáticos e mais próximos ao núcleo central do tema.” (Winner, 2013, p. 3-4).

Segundo essa definição, a bomba atômica seria um exemplo de “tecnologias inerentemente políticas”, uma vez que exigiria um ambiente social, político e econômico que permitisse absoluto controle centralizado sobre esse artefato técnico. A conclusão é que algumas tecnologias seriam mais adequadas a determinadas formas sociais e políticas, enquanto outras, do primeiro tipo descrito por Winner, seriam invenções ou adaptações de artefatos ou sistemas técnicos com o objetivo de resolver problemas observados na sociedade. No entanto, a forma como as tecnologias do cotidiano são escolhidas entre as alternativas técnicas disponíveis não estaria livre de política.

Para pensar essa questão, Winner propõe uma alternativa à dicotomia entre determinismo tecnológico (em que a sociedade é moldada por padrões técnicos) e determinação social da tecnologia (tese que sugere que as coisas técnicas não importam, e sim o sistema econômico e social no qual a tecnologia está inserida):

“A teoria de política tecnológica chama atenção ao momentum dos sistemas sociotécnicos de grande escala, à resposta da sociedade moderna a certos imperativos tecnológicos, e às formas pelas quais as finalidades humanas são poderosamente transformadas na medida em que se adaptam aos meios técnicos (…). Seu ponto de partida é uma decisão de se tomar os artefatos tecnológicos seriamente. Em vez de insistir que nós reduzamos tudo imediatamente ao jogo das forças sociais, a teoria da política tecnológica sugere que nós prestemos atenção às características dos objetos técnicos a aos significados dessas características. Um complemento necessário e não uma substituição das teorias da determinação social da tecnologia, esta abordagem identifica certas tecnologias como fenômenos políticos em si próprias.” (WINNER, 2013, p. 3).

Nesse contexto, torna-se importante conhecer a definição de política de Winner que, segundo ele, trata-se dos “arranjos de poder e autoridade nas associações humanas assim como as atividades que ocorrem dentro desses arranjos.” (Winner, 2013, p. 4). Diante disso, as mudanças tecnológicas expressam uma série de motivações humanas, incluindo o desejo de dominação de uns sobre os outros. Assim, os dispositivos tecnológicos podem ser projetados com o objetivo de produzir efeitos específicos para além dos seus usos imediatos, sendo que esses efeitos podem ser ao mesmo tempo positivos para alguns e negativos para outros no contexto capitalista, em que conhecimento científico, invenção tecnológica e lucro corporativo se retroalimentam. Nesse processo em que as sociedades escolhem tecnologias como formas de construir a ordem social, que influenciam o trabalho, a comunicação, o acesso a bens de consumo e etc., os indivíduos possuiriam diferentes graus de poder e consciência desse processo.

Lewis Mumford, nos anos 60, chamou a atenção para a coexistência de duas tecnologias paralelas, que ele chamou de tecnologias democráticas e tecnologias autoritárias. Segundo ele, as tecnologias democráticas seriam centradas nos homens, frágeis, mas duradouras, caracterizadas pela produção em pequena escala, baseada na habilidade humana, na energia animal e, quando utilizada alguma técnica, esta teria pleno domínio humano. Já as tecnologias autoritárias seriam centradas no sistema, poderosas, mas instáveis, configurando-se como invenção técnica, inovação científica e com controle político centralizado. Apesar de sua tendência destrutiva, Mumford aponta que a técnica autoritária é aceita por ter levado à criação de uma economia de abundância, permitindo a emergência de uma nova liberdade como uma versão sofisticada da antiga escravidão. Com isso, ela corresponderia ao princípio básico da democracia, de acordo com o qual cada membro da sociedade deveria ter direito a uma determinada porção dos seus produtos, mas que seriam mecanicamente dosificados, quantitativamente multiplicados e coletivamente manipulados em ampliados, ao invés de serem frutos da escolha individual.

Nesse sentido, o autor aponta que:

“Por medio de la mecanización, la automatización, y la dirección cibernética, esta técnica autoritaria ha superado finalmente su debilidad más grave: su dependencia original con respecto a unos servomecanismos resistentes, a veces activamente desobedientes, y todavía lo bastante humanos como para abrigar propósitos no siempre coincidentes con los del sistema.” (MUMFORD, 2004, p. 4).

O objetivo da técnica autoritária, então, seria transferir os atributos da vida para a máquina e o coletivo mecânico. Nesse contexto, o centro da autoridade passa de uma personalidade tangível para o próprio sistema, que seria ao mesmo tempo invisível, mas onipresente. Ou seja, o risco para a democracia não viria da técnica em si e sim do fato de que “nuestras grandes transformaciones físicas han sido efectuadas por un sistema que deliberadamente elimina toda personalidad humana, ignora el proceso histórico, abusa del papel de la inteligencia abstracta, y hace del control sobre la naturaleza física, y por último del control sobre el propio hombre, la finalidad principal de la existência” MUMFORD, 2004, p. 5).

No entanto, Mumford não nega os benefícios da tecnologia, mas aponta para a necessidade de reconhecer suas desvantagens e impactos nos indivíduos e na sociedade como um todo e, mais do que isso, para a necessidade de reconstrução da ciência e da técnica reinserindo o humano em cada etapa do processo, permitindo alternativas humanas e decisões humanas, aproximando-se de tecnologias democráticas.

Andrew Feenberg, em “Racionalização subversiva: tecnologia, poder e democracia” nos conduz a uma reflexão sobre a relação entre tecnologia e poder nas sociedades modernas e sobre a necessidade de desvendar o horizonte político-cultural no qual a tecnologia hoje hegemônica foi concebida (sob a ideia da racionalidade), desmitificar a ilusão de que algumas técnicas são inescapáveis nos dias atuais e expor a relatividade das escolhas técnicas predominantes hoje.

Assim, embora a tecnologia seja entendida por ele como fonte de poder nas sociedades modernas, na sua visão, ela teria o potencial de ser operacionalizada democraticamente. A própria ideia de “racionalização subversiva” que dá título ao texto, se configuraria como um modo alternativo de racionalizar a sociedade que poderia levar à democracia. Para Feenberg, as tecnologias específicas que se desenvolveram mais recentemente em países ocidentais não devem ser confundidas com a tecnologia em geral. De acordo com ele:

“São tecnologias de conquista que aparentam ter autonomia sem precedentes; suas origens sociais e impactos estão escondidos. (…) esse tipo de tecnologia é uma característica particular de nossa sociedade e não uma dimensão universal da “modernidade” como tal.” (FEENBERG, 2010. P. 107-8)

Em sua reflexão, Feenberg apresenta também a tese do determinismo tecnológico, segundo a qual as tecnologias teriam uma lógica funcional autônoma, que poderia ser explicada sem fazer referência à sociedade. Ao contrário, para ele, a tecnologia têm impactos sociais e, para que sejam atingidas as potencialidades democráticas da indústria capitalista moderna, temos que questionar as premissas do determinismo tecnológico, segundo as quais o progresso científico e tecnológico seria unilinear e as instituições sociais teriam que se adaptar aos imperativos tecnológicos.

Segundo Feenberg, partindo de uma sociologia construtivista, “as teorias e as tecnologias não são determinadas ou fixadas a partir de critérios científicos e técnicos. Concretamente, isso significa duas coisas: em primeiro lugar, geralmente há diversas soluções possíveis para um determinado problema e que os atores sociais fazem a escolha final entre um grupo de opções tecnicamente viáveis e, em segundo, a definição do problema muda frequentemente durante o curso de sua solução.” (FEENBERG, 2010. p. 109). Nesse sentido, a pesquisa sobre tecnologia deveria considerar, além dessas premissas, que o desenvolvimento tecnológico não determina a sociedade, mas é determinado por fatores técnicos e sociais e que a tecnologia é um campo de disputa entre diferentes visões de civilização. Ou seja, a tecnologia não é um mero meio para se chegar a um fim. Ao contrário, ela define as partes principais do ambiente social e satisfaz as necessidades de uma hegemonia particular, sendo que é contra essa hegemonia que se deve lutar e não contra a tecnologia em si.

Trazer as reflexões dos três autores para os dias atuais, no contexto da pandemia no Brasil, permite que se lance luz sobre a forma de enfrentamento dos impactos dessa situação, considerando as evidências sobre o acesso e o uso das tecnologias da informação pela população brasileira. Em um contexto em que cerca de um terço dos domicílios não estão conectados à Internet, e em que 58% da população usuária de Internet a utiliza exclusivamente pelo telefone celular (portanto, sendo a maior parte submetida às práticas comerciais de zero-rating empregadas pelas operadoras de telefonia celular brasileiras, que limitam o acesso a redes sociais e aplicativos de comunicação), o fato do acesso ao Auxílio Emergencial estar sendo mediado por ferramentas digitais (website e aplicativo de celular) é bom para se pensar no poder por trás dos artefatos técnicos e no uso político das tecnologias, levando à exclusão justamente da população mais vulnerável, que deveria ser foco dessas políticas.

Bibliografia

  • FEENBERG, Andrew. Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia. In: A Teoria Crítica da Tecnologia de Feenberg, 2010, p.105-128
  • WINNER, Langdon. Artefatos têm Política? (tradução Fernando Manso). “Do artifacts have politics?” In: The Whale and the Reactor: a search for limits in an Age of High Technology. Chicago: The University of Chicago Press, 2013, p.19-39.
  • MUMFORD, Lewis. Tecnicas Autoritarias y Democracias. Ciencia, Tecnología y Sustentabilidad. El Escorial, julio 2004 [1964].