Tecnoceno e Hegemonia Cibernetica

Tecnoceno e Hegemonia Cibernetica

por Henrique Parra

Em cada momento histórico podemos estabelecer relações de interdependência e codeterminação entre as dinâmicas socioeconômicas, as instituições e formas de ação política, as formas de produção-circulação-acesso ao conhecimento e as formas tecnológicas predomiantes. Tecnologias de plantio, tecnologias mecânicas e térmicas, a escrita, sistema burocráticos (pré-estatais e estatais), eletricidade, meios de comunicação de massa, informatização, ciência…

Em nosso ultimo encontro exploramos algumas perspectivas sobre o fenômeno tecnológico e os modos de composição sociotécnica: processos de construção sociopolítica das tecnologias, dinâmicas tecnodeterministas, tecnologias políticas. Foi um primeiro movimento de sensibilização e desnaturalização sobre possíveis interpretações das relações entre tecnologia e sociedade. Com isso, pretendíamos caracterizar o momento histórico em sua dimensão tecnopolítica e tecnocrática, indicando como nosso modo de vida contemporânea está organizado e em profunda interdependência com inúmeros arranjos sociotécnicos e as relações sociais tecnicamente mediadas.

Na aula de hoje queremos produzir mais uma dobra sobre essa caracterização sociohistórica, destacando a emergência e a formação de tecnologias baseadas nos processos de informatização. Assim como cada época é marcada por técnicas e tecnologias específicas, dando forma a um tópos que corresponde e organiza outros processos sociais (pensemos nas tecnologias marítmicas, máquinas térmicas, engenhos de mecanização, industria, eletricidade, transporte automobil…), seguimos a hipótese (dos autores indicados) que a partir de meados dos anos 40 do século XX, a informatização tornar-se a base técnica que marca inúmeras transformações sociais, culturais, econômicas e políticas. Segundo Herminio Martins, “as tecnologias de informação causaram a maior tecnomorfia dentre todas as tecnologias anteriores. Elas também tem gerado metáforas e entendimentos que penetraram todas as áreas do conhecimento.”

Neste percurso pretendemos abordar tanto aspectos relacionados à tecnicidade específica da informação digital e explorar seus modos de composição em algumas direções: ciência, economia, socialidades, cultura e política.

Um primeiro aspecto a ser destacado, e que talvez seja o mais sutil e ao mesmo tempo tão profundamente estruturante, é o fato da informatização digital ser simultamente o resultado de tecnologias materiais (artefatos, dispositivos, arranjos) que realizam a digitalização, transmissão e processamento de informações, mas também ser portadora de uma ontologia e epistemologia sobre os fundamentos e a organização de processos comunicacionais, socioculturais, biológicos, materiais em humanos e não-humanos, a partir de uma concepção da noção de informação.

Essa transversalidade é o que irá caracterizar para Laymert a “Virada Cibernética” e para a Herminio Martins a “Metafísica da Informação” e a “Hegemonia Cibercultural”. Esse será um dos eixos de reflexão da aula de hoje.

Diferentemente de outras tecnologias, a informatização torna-se rapidamente o fundo cultural da nossa sociedade, estando presente simultaneamente em diferentes domínios da vida social, e ao faze-lo, produz agenciamentos inesperados. A depender do campo em que observamos a sua instalação e reticulação, a informatização dará passagem a determinadas forças e valores que ora amplificam a estrutura de um campo existente, ora o transformam radicalmente, criando outras distribuições de poder.

Outro elemento importante. Como fundamento ontológico e epistêmico atualizado através de uma tecnologia material, a informatização realiza a fusão forma-expressão-conteúdo-suporte. A digitalização é simultaneamente o resultado de um processo de codificação de algo em informação digital que se cria e se realiza através de um meio que é ele próprio digital! Meio, forma e conteúdo estão plasmados na mesma “matéria in-formação”.

Há diversas trilhas que podemos vislumbrar como possíveis linhas de investigação sobre os modos de associação e individuação emergentes através das tecnologias de informação e comunicação digital.

Dimensão ontológica e epistêmica do projeto cibernético

Laymert G.Santos: “A elaboração de uma linguagem comum para além das especificidades dos diversos ramos do conhecimento científico e a instituição de uma nova síntese, só comparável à revolução newtoniana, indicavam que a teoria da informação parecia assumir um papel central no pensamento humano contemporâneo.”

Simondon: “Enquanto a especialização científica impedia as possibilidades de comunicação, nem que fosse por causa de linguagens diferentes entre especialistas de diferentes ciências, a cibernética, em contrapartida, resultava de vários homens trabalhando em equipe e tentando entender a linguagem uns dos outros. […] a
presença de médicos, de físicos e de matemáticos eminentíssimos nessa equipe mostrava que se produzia no campo das ciências algo que sem dúvida não havia existido desde Newton pois […] Newton pode ser considerado o último homem de ciência a haver coberto todo o campo da reflexão objetiva. […] Com efeito,
historicamente, a cibernética surgiu como algo novo, querendo instituir uma síntese.”

Simondon: “Seria preciso definir uma noção que fosse válida para pensar a individuação na natureza física tanto quanto na natureza viva, e em seguida para definir a diferenciação interna do ser vivo que prolonga sua individuação separando as funções vitais em fisiológicas e psíquicas. Ora, se retomamos o paradigma da tomada de forma tecnológica, encontramos uma noção que parece poder passar de uma ordem de realidade a outra, em razão de seu caráter puramente operatório, não vinculado a esta ou àquela matéria, e definindo-se unicamente em relação a um regime energético e estrutural: a noção de informação”

Passagem do trabalho como medida => quantificado depois em “energia” ou capacidade energética de transformação.
Atualmente, informação é a medida.

Kubernetes – arte de governar, de pilotar, o timoeiro. O bom navegador que governa o barco é capaz de alterar continuamente o movimento da embarcação de forma a seguir o caminho projetado. Ele é capaz de lidar com as tempestades que acontecem, com as ondas inesperadas, fazer correções de rota para seguir a trajetória e o objetivo projetado: modelização da situação, antecipação, previsibilidade, controle.

Cibernética – ciência da comunicação e do controle em animais e máquinas, diria Norbert Wiener.

Hermínio Martins:
Simulação como nova fonte de conhecimento.
Simulação: ao antecipar, acaba por determinar o real, acaba por substituir a experiência. Depreciação do conhecimento prático, observacional, experimental….E de todas as outras formas de conhecimento, como as etnociências.

Computer simulation research – 3º tipo de ciencia X 3º tipo de fazer ciencia (perspectiva adotada por Martins).
Esta se tornando a tecnologia master para a producao de conhecimento científico, a tecnologia de epistemogeneses.

3 estágios ou tipos de pesquisa empírica, 3 formas de se fazer ciencia empírica.
A-ciencias ou sciencing in vivo: estudar seres naturais no “mundo selvagem”, com ou sem instrumentos especiais.
B-ciencias ou sciencing in vitro: estudar os seres naturais no laboratório (wet labs)., para observação detalhada, experimentacao fisica de forma controlado (Bacon e Humboldt combinam A e B).
C- sciencing in silico: e-sciences, cybersciences: estudo dos processos, mecanismos e dinamicas de entidades naturais, culturais, através da simulacao computacional (dry labs).

Sobre a tecnicidade do Digital-Cibernético

Quando falamos em tecnologias da informação e comunicação referimo-nos, frequentemente, a duas dinâmicas tecnológicas distintas: digitalização e mediação de redes cibernéticas. É a combinação dessas duas tecnologias que dá um contorno específico à mediação técnica introduzida por esses dispositivos na vida social. O uso do Skype para comunicação oral (exemplo comercial mais popular do protocolo VoIP -voz sobre IP) tem implicações políticas e socioculturais muito distintas de uma interação realizada através de um telefone analógico.

Destaco algumas dessas características presentes na comunicação em redes cibernéticas: o princípio de feedback como elemento de regulação e controle do processo informacional; a convergência digital (transformação de diversos tipos de dados em informação digital); a interatividade (também presente no princípio de feedback mas aqui pensada genericamente como condição necessária para a comunicação); a rastreabilidade (qualquer ação cibermediada produz uma nova informação digital passível de ser registrada); a quantificação (resulta da rastreabilidade como possibilidade de mensuração dos dados produzidos em novos processos); a reprodutibilidade, pois o acesso a uma informação digital exige a reprodução desta informação na própria máquina.

Portanto, o processamento de qualquer informação digital gera sempre um “excedente relacional” que poderá ser utilizado para diferentes fins.

Essas características da mediação digital-cibernética permite a emergência de um novo medium (meio), sujeito a novas disputas políticas, sobre o qual desenvolve-se um regime de visibilidade e produção do real. Isso insere um novo elemento das relações sociais tecnicamente mediadas: novos modos de subjetivação, de associação, novos regimes de sensibilidade, mas também novas formas de produção de valor, exploração e exercício do poder. Com a crescente digitalização amplia-se a fronteira do codificável, do quantificável e mercantilizável. (Se por um lado, o início da internet foi marcada pelo cultura do compartilhamento numa economia da dádiva (desmonetarizada), gradualmente, ela foi sendo colonizada pela expansão de novas formas de propriedade intelectual e tecnologias de restrição de direitos de acesso, cópia e circulação. Novos intermediários, novas concentrações, novos cercamentos e expropriações.)

Capitalismo de plataforma, capitalismo de vigilância, excedente comportamental, economia da atenção são algumas das expressões da tendência de mercantilização e colonizaçao da vida tecnicamente mediada.

O ponto de encontro entre a financeirização da economia global com as tecnologias digitais manifesta-se também sobre os territórios físicos na forma de um neoextrativismo (uma nova fronteira de expropriação do Comum) como descreve Saskia Sassen. Basta pensarmos no combinação das políticas de especulação imobiliária, na monetização da vida de bairros e cidades em alugueis no capitalismo de plataforma como o Airbnb.

Ou ainda, no capitalismo de vigilância, tão bem descrito por Shoshana Zuboff, ao analisar a produção, análise e extração dos chamados “excedentes comportamentais”, nova camada de produção de valor obtida graças à coleta e mineração de dados pessoais em grandes escalas, transformada em valioso ativo na economia de atenção (comunicação e marketing).

A imagem da mineração tem aqui um duplo sentido: ela é tanto um ato de prospecção (do virtual) como de extração de valor.

O digital: controle e modelização do futuro

Digital é controle. Mas de que controle falamos?
Controle: define parâmetros de ação e avaliação de forma imanente. Não é possivel executar uma ação através de um dispositivo ou função digital sem executar o seu programa.
Digital: redução probabilística de um conjunto de possíveis.

Controle (dispositivo com capacidade de receber input, analisar e dar um output para o sistema)
Forma de delegação (de um processo analitico e decisório) para um artefato técnico.
Sistema de abstração e delegação de uma autoridade.

Protocolo:
Toda comunicação em redes digitais implica o respeito a determinados protocolos técnicos. Como nos lembra Alexander Galloway, “o protocolo pode ser entendido como uma regra convencionada para governar de maneira distribuída um conjunto de comportamentos possíveis dentro de um sistema heterogêneo”; ou ainda, “uma técnica para alcançar a regulação voluntária dentro de um ambiente contingente” (GALLOWAY, 2004, p. 8). A palavra “governo” é importante aqui. Para você se comunicar na internet, é preciso respeitar seus protocolos. É preciso passar por eles. Isso é controle.

TCP/IP = Conteiner
Meio de transporte, alheio ao conteúdo e ao sentido.

Laymert:
A informação enquanto diferença que faz a diferença (Bateson).
Reconfigura o trabalho, o conhecimento e a vida, enquanto a virada cibernética transforma o mundo num inesgotável banco de dados. Em toda parte, e sempre que possível, o capitalismo de ponta passa a interessarse mais pelo controle dos processos do que dos produtos, mais pelas potências, virtualidades e performances do que pelas coisas mesmas. O capital, e antes de tudo o capital financeiro, começa a deslocar-se para o campo do virtual, voltando-se para uma economia futura cujo comportamento é analisado por meio de simulações cada vez mais complexas.

Com efeito, como germe que atualiza a potência do virtual, ela é o operador da passagem de uma dimensão da realidade para outra, se lembrarmos que a dimensão atual da realidade é a dimensão do existente, ao passo que a dimensão virtual é a do que existe enquanto potência.

“Mas nos esquecemos de que a ambição maior da nova economia é assenhorearse da dimensão virtual da realidade, e não apenas da dimensão da realidade virtual, do ciberespaço, como tem sido observado. Se tivermos em mente que a dimensão virtual da realidade começa a ser mais importante em termos econômicos do que a sua dimensão atual, teremos uma idéia melhor do sentido da corrida tecnológica. Aliado à tecnociência, o capitalismo tem a ambição de apropriar-se do futuro.”


Notas da Aula 4: 13 de abril: Tecnoceno e Hegemonia Cibernética