Eventos extremos – um (des)encontro com a cracolândia

Caras e caros amigos.

Os últimos dez dias foram muito difíceis. Inicio um primeiro breve relato em razão da urgência do momento. Nos próximos dias espero conseguir tempo, energia e saúde para manter uma escrita mais frequente.

Na madrugada do dia 11 de maio, uma guerra muito particular bateu em nossa porta. Acordamos por volta das 4:00 com o barulho de pessoas correndo na rua, seguido dos sons da cavalaria. Estamos, infelizmente, acostumados a ouvir o som da ferradura desses cavalos no asfalto, mas nessa madrugada foi diferente. Nossa vida não mais será a mesma!

Faz pouco tempo que recomeçamos a retomada de um novo cotidiano, mergulhados em dois anos traumáticos da experiência pandêmica que ainda persiste. Estávamos nos readaptando a uma São Paulo pós-pandêmica. E agora, sinto que fomos atravessados por um novo “evento extremo”.

Desde quarta-feira (11/05) a rotina em nosso quarteirão na Rua Helvétia foi radicalmente transformada em um grande laboratório da militarização, do deslocamento forçado, da especulação imobiliária e das graves violações dos direitos de duas populações distintas em suas condições de vida e vulnerabilidades (moradores do bairro e usuários), mas que estão sendo brutalmente atacadas pelo desastre estrategicamente produzido pelo atual governo

(uma análise desse processo foi publicada esta semana no texto “O que significa dizer que a cracolândia funciona?” https://outraspalavras.net/…/por-que-funciona-o-ataque…/

Inicio agora um esforço de contar outras histórias a partir da minha experiência, da perspectiva da formiga que está bem perto do chão, que sente os cheiros, que se movimenta rapidamente, que detecta pequenos sinais de alteração no entorno e procura capturar a emergência do que acontece e do que está por vir.

Na manha da quarta-feira, enquanto tomava café, nossa filha de 8 anos correu pra a varanda onde costuma assistir a “TV realidade”, como ela mesma diz. Havia um fluxo intenso de pessoas descendo à Helvetia e começando a se concentrar no nosso quarteirão, entre a av. São João e a Rua Barão de Campinas. Em pouco tempo a rua ficou totalmente bloqueada. Sai para dar aulas e só retornei à noite de carona com um colega professor. Quando estávamos chegando haviam muitas pessoas caminhando em direção à Helvetia e não foi possivel entrar na rua. Ele me deixou mais para baixo. Desci e andei com as pessoas que estavam vindo da comunidade do Moinho. Naquele noite, a rua encheu ainda mais.

Na quinta-feira, durante o dia, já não era possível realizar qualquer atividade na rua e os serviços públicos que funcionavam deixaram de acontecer rapidamente (coleta de lixo, manutenção rede elétrica, policiamento, passagem de onibus, etc). A noite, um jovem negro de 32 foi morto por um policial ali perto. Minutos depois uma multidão nervosa foi conduzida – a polícia fechava as ruas laterais – para nosso quarteirão. Numa situação dessas é difícil avaliar como será a evolução dos acontecimentos, e qual é o momento e o risco de ficar ou sair. Desde então, já não conseguimos abrir as janelas, seja pelo receio de uma bomba de gás lacrimogêneo ou pelo cheiro da rua lotada de gente num campo de exceção gerido pelo consórcio Estado-Corporações-Crime Organizado. Conhecendo a dinâmica do nosso território, fui surpreendido pela velocidade e intensidade do processo.

Na sexta, diante do aumento da tensão decidimos levar nossa filha para a casa de um familiar. Dias depois, eu e minha companheira partimos com poucas coisas. Fomos expulsos pela violência do entorno que invadiu a casa. Nosso apartamento na Helvétia é nossa única casa. Estou sentindo uma combinação de tristeza, dor e raiva diante de tudo que está acontecendo.

Seguimos presentes, voltando ao apartamento quase todos os dias, e entre os vizinhos estamos todo o tempo nos falando e nos apoiando e cuidando. A situação é gravíssima. Estamos começando a nos organizar. Precisamos experimentar, inventar novas alianças!Guardadas as devidas proporções, sinto-me agora como um refugiado com minha família, pulando de casa em casa de amigos que generosamente nos ofereceram refúgio, tentando manter um cotidiano com uma criança. Enquanto isso, a cidade segue funcionando. Basta andar uns 3 quarteirões dali para já não saber de mais nada.

A essa altura minha filha já entendeu algumas coisas: a polícia não vem aqui para nos proteger e nem para resolver os problemas. Se assistisse TV (não temos em casa) saberia facilmente, diante do que ela vê, que todos falam mentiras.

O problema tal qual produzido tem responsáveis facilmente identificáveis: prefeito Ricardo Nunes e o governador Dória/Garcia. Já aprendemos que a produção da cracolândia funciona como uma grande engrenagem dos poderosos para desenhar a cidade conforme seus interesses. Os usuários de drogas ilícitas em situação de rua e os moradores próximos tornam-se peças vulneráveis nesse arranjo.

Como defender o direto à cidade, o direito à moradia, o direito à saúde e o direito à vida digna e ao mesmo tempo desmontar e desarmar o desejo por soluções autoritárias?Entramos na era dos eventos extremos. A pandemia, a guerra global, o autoritarismo, a militarização, as mudanças climáticas…

Quando não há mais refúgio seguro, a revolta torna-se um vírus!