Não olhe para cima! Olhe para todos os lados com os pés no chão

Seguimos experienciando a presença perturbadora do fluxo da cracolândia em nossa rua. No bairro muitas ações coletivas estão ocorrendo. Mutirões de trabalho, inúmeros grupos de whatsapp entre vizinhos e pessoas da região, articulações junto a movimentos e representantes políticos, colaborações, tensões e também muitos conflitos.

Diante da produção e gestão da cracolândia, os poderes dominantes (Estado-Corporações-CrimeOrganizado) governam a todos nós através da contínua produção do medo. O medo é um afeto que provoca uma rápida reação de urgência e individualização, corroendo nossa capacidade de estabelecer vínculos, de confiar e de pensar para além do imediato.

A presença e a dispersão do fluxo da cracolândia pelo centro de São Paulo, tem disseminado uma experiência de insegurança para amplos setores que habitam e transitam por essa região da cidade. As ações policiais de repressão ao tráfico também reverberam midiaticamente graças a uma sincronia precisa entre os horários das operações e as transmissões televisivas dos noticiários afinados com a mobilização do medo e da insegurança na população. Essa sensação produz a captura de nossa atenção midiática (o medo vende notícias) e dissemina uma cultura securitária na população que clama por medidas urgentes de força. Essa é uma receita antiga de um modelo de aliança entre governo-mídia-polícia-eleições. Na situação atual, o cálculo político em questão envolve a disputa entre candidatos ao governo do estado de São Paulo por um eleitorado governado pelo medo.

No contexto de sociedades urbanas altamente individualizadas, onde a vida de cada um está inserida em ritmos e dinâmicas muito diferenciadas, cada indivíduo é solicitado a responder a demandas muita distintas para poder conduzir sua própria vida.

Nas sociedades onde prevalece uma cultura da competição, a valorização do mérito como sucesso individual e o espírito sacrificial como modelo de uma cidadania subserviente, o medo provoca o fortalecimento de uma forma de ser-pensar-agir autocentrada e violenta. O cidadão que ainda tem trabalho e paga impostos sente-se injustiçado pela experiência cotidiana de insegurança (que é real).

Considerando que atualmente boa parte de nossa experiência comunicacional e relacional ocorre através de dispositivos ciberdigitais, os efeitos da arquitetura tecnopolítica desses ambientes acentuam ainda mais os modos individualizantes de produção e apreensão da realidade.

É muito difícil sustentar a conversação em grupos do whatsapp. O desenho da ferramente é contrário às condições necessárias para a produção de inteligência coletiva, pois sua aceleração e facilidade de emissão de opiniões emotivas bloqueiam a formulação de reflexões mais sofisticadas. É necessário muito treino e uma outra cultura técnica pra evitar a rápida polarização e a “depuração” que vai rapidamente expulsando dos grupos qualquer expressão que não esteja conforme a disposição da maioria. Aqui, vale apontar como muitos desses grupos sofrem com a presença de atores bem treinados na condução de pautas estratégicas.

Nessa situação, quando o medo emerge como afeto distribuído, o efeito é nefasto. Todos se tornam inimigos, a desconfiança prevalece, o impulso de auto-sobrevivência torna-se concorrencial, o príncipio de realidade e a existência de um mundo compartilhado se estilhaçam.

Os inimigos eleitos (e insistentemente produzidos pelas formas dominantes de governo da vida) e que se transformam na causa imediata dos nossos problemas são frequentemente os vulneráveis mais próximos, os que estão à vista da nossa experiência cotidiana (seja na rua ou nas situações mediatizadas).

É assim que os poderosos nos controlam. Eles nos dividem, nos fazem crer que não são responsáveis pelos problemas. Fragmentam a experiência de mundo comum para transforma-la em realidades compartimentadas administráveis.

Nos fazem crer que o inimigo é o corpo negro e pobre que está habitando a nossa rua; que o inimigo é a organização social que vai doar cobertor e alimento para quem está na rua; que o inimigo é o juiz que cumpre a lei e liberta os supostos traficantes pés-de-chinelo que foram presos com evidências frágeis; é o vizinho que não concorda em descer pra rua pra dar porrada; é o legislativo que não cria leis mais duras pra encarcerar os desviantes…

O medo convoca medidas urgentes e, por sua vez, autoritárias. Historicamente, do ponto de vista eleitoral, a produção do medo tem sido utilizado nas ultimas décadas em todo o mundo para fortalecer o ascenso político de governantes e representantes autoritários, os quais se apresentam como a mão-forte que irá solucionar imediatamente os problemas.

Porém, a história já demonstrou que não há país ou sociedade que tenha sobrevivido de forma digna a esse modo de governo. A guerra global, transformada agora em guerra civil cotidiana, é o modo de governo atual de um sistema de crise permanente.

Como tecnologia de governo trata-se da produção contínua da instabilidade e do medo como experiência psicossocial, pois objetiva-se governar e modelizar a incerteza como forma de condução da vida coletiva. Produzir o risco, gerir as urgências, sem jamais atacar ou resolver as causas dos problemas.

Para os poderosos é muito útil e estratégico promover movimentos coletivos cujo alimento seja o medo. São massas mais facilmente administráveis por um poder centralizado. É um tipo de corpo social que responde mais facilmente à capacidade de coordenação entre o poder político, midiático e econômico, pois são poderes altamente centralizados, com interesses confluentes e com alta capacidade de transmissão.

Assim vemos surgir rapidamente coletivos constituidos a partir de demandas que clamam por propostas autoritárias. A emergência e a centralidade adquirida, por exemplo, pela pauta da internação compulsória, permite desviar a atenção do público, desresponsabilizando o governo e polícia e transferindo a culpa para o legislativo e o judiciário, por não proporem as medidas de exceção que se apresentam como a única saída.

Para sustentar esses movimentos, é fundamental alimentar continuamente uma cultura fundada na lógica concorrencial, no medo e na desconfiança. Assim, a única fonte de “confiança” que sobra para esses indivíduos é o governante, o policial, o jornalista-âncora e o empreendedor de sucesso do momento.

O medo, por sua vez, é um sentimento real. Não pode ser negligenciado como experiência humana. Sentir medo diante de situações adversas e ameaçadoras não é o problema. A questão é o que fazemos com o medo, como lidamos com essas situações que provocam o medo?

Sinto dizer que atualmente os movimentos progressistas não tem dedicado muita atenção ao medo como experiência psico-política da amplos setores da população. Não à toa, os movimentos reacionários estão produzindo, controlando a onda e surfando sozinhos na energia mobilizada por esse afeto que emerge diante das diversas crises que estamos vivendo: trabalho; empobrecimento geral; meio ambiente; segurança coletiva; sanitária; das instituições políticas e da ciência.

A produção contínua do medo e o estilhaçamento dos mundos compartilhados dão origem às Guerras de Mundos! Trata-se de verdadeiras guerras ontológicas (sobre o que é o real e o que conforma a existência de cada ente que habita um mundo) que se transformam efetivamente em guerras físicas contra os outros que habitam outras realidades. O que antes era só um modo de ser diferente, torna-se um modo de ser que ameaça a minha existência. Os inimigos da ordem proliferam em toda parte: são os povos indígenas; os quilombolas; os jovens negros e periféricos; os sem-trabalho; as feministas; os sem-teto; os usuários de drogas ilícitas; os praticantes de religiões não-hegemônicas; os divergentes da norma cisheterossexual patriarcal; os afetados pelos desastres político-ambientais; os defensores dos direitos dessas populações (genericamente chamados de defensores de direitos humanos). Os inimigos nunca são os poderosos que produzem e violam continuamente os direitos dessas populações.

Mas o contrário do medo é a confiança.

Não há vínculo humano, não há sociedade que exista sem a confiança mútua. A produção da confiança exige a sustentação da possibilidade do encontro, de estar com um outro (desconhecido) em que é necessário confiar para transformar e contruir algo que se deseja, que se espera. Por isso a confiança está sempre acompanhada do afeto da esperança. A confiança é sempre um ato de esperança de que algo que desejo possa acontecer.

Quando há um encontro efetivo entre as pessoas, há sempre uma transformação da realidade do ser, pois para que haja um encontro algo em mim e no outro deve ser deslocado, transmutado para que haja comunicação. Mas para que isso aconteça é preciso arriscar confiar, desejar sustentar um encontro no interior de uma Guerra de Mundos. Como criar um encontro (in)comum?

É muito cômodo e prático julgar e ignorar um ser que habita outros mundos. São realidades tão díspares e compartimentadas que nossas categorias do pensamento, nossos sistemas classificatórios, que funcionam como nossas balizas existenciais na vida cotidiana, são mais ágeis em estabilizar as pré-definições em que estamos mergulhados. Atualmente, isso é ainda mais reforçado graças à nossa vida nas redes sociais digitais, que tendem a nos colocar de forma imersiva em ambientes informacionais e relacionais absolutamente conformados para nossas disposições iniciais.

Uma cidade só é feita de muitos mundos, multipli-cidades. O contrário da cidade é a monocultura dos condomínios cercados ou os bairros homogeneizados e militarizados. A monocultura como forma de vida só se sustenta com a violência e o extermínio da diferença.

Para atuar na produção de mundos (in)comum teremos que encarar essa guerra de mundos de frente e por dentro. Não basta ficar olhando para cima! Precisamos olhar para os lados. Evidentemente, ter governantes que promovam a confiança social e a solidariedade como princípio político pode fazer diferença. Mas o problema seguirá entre nós. Ele está bem aqui na nossa frente e ao nosso lado.

Como ser-pensar-agir com os pés bem fincados na terra, obrigando-nos a ficar com o problema, a ter que estar de forma implicada com quem está ao meu lado mas que habita um “outro” mundo?