O Anjo da História não usa cloroquina

Ensaio de Eduardo Marangoni Canesin

1. Uma abertura

No livro Nós (1924), de Zamyatin, uma personagem diz ao protagonista que as pessoas são como livros: assim como só saberemos o fim de um livro na última página, apenas conheceremos uma pessoa nos seus gestos finais. Essa ideia, contudo, é anterior à Indústria Cultural e sua padronização dos conteúdos, a qual nos permite saber o fim do livro logo em suas primeiras páginas. Também é anterior à era dos algoritmos, em que dá para conhecer e prever a ação de uma pessoa após poucos links que ela acessa e curtidas que dá.

2. Uma imagem

O eixo estruturante do filme O Sétimo Selo (1957), de Bergman, é uma partida de xadrez entre o protagonista e a morte, a força avassaladora e indomável que põe fim aos empreendimentos humanos. Nos dias de hoje, uma tal batalha épica se daria entre o humano e a inteligência artificial, uma força avassaladora que poderia ser domada e que é um empreendimento humano. O problema é que essa partida já foi jogada por Kasparov em 1996 – e perdida.

3. Um texto

A figura de um jogo de xadrez já foi mobilizada por Walter Benjamin em suas teses sobre a história. No entanto, nenhuma de suas imagens é mais forte do que a do Anjo da História (tese 9), cuja face está dirigida para o passado e vê uma catástrofe única que acumula ruína sobre ruína onde nós enxergamos uma cadeia de acontecimentos – e que é impelido pela tempestade do “progresso”.

Mas que progresso é esse? Trata-se, sem dúvida, do mesmo progresso que, atualmente, se configura como o capitalismo extrativista que cria o cenário no qual uma pandemia pode se instalar enquanto apregoa que as causas da catástrofe poderão ser usadas para contorná-la (até que uma nova surja, evidentemente). É isso que nos mostra Rob Wallace (2021), quando argumenta que o agronegócio é responsável pelo surgimento de vários patógenos, ao mesmo tempo em que se apresenta como o caminho certo a ser seguido como proteção contra novas pandemias.

Tal progresso é aquele que universaliza epistemologias particulares e faz com que visões de mundo regionais (normalmente do norte global) se apresentem como metafísicas universais, como argumenta Hui (2020, p. 23).

Ora, é este mesmo progresso que, em sua inclemência instrumental, torna tudo um meio para o fim que venha a ser definido – e, no mais das vezes, o fim é ele mesmo, aparecendo como um motor que se auto-engendra em um movimento de progresso pelo progresso em que tudo o mais é descartável.

Falar sobre tal progresso e sobre a racionalidade subjacente a ele é apresentar o caminho que tem sido preponderante em nossa história mundial, embora mais pela sua imposição bélica (a história europeia e de suas colonizações podem muito bem exemplificar este aspecto) do que pela superioridade metafísica dos conceitos de progresso e racionalidade adotados. E devemos ter em mente que ‘preponderante’ não significa ‘único’. Nessa linha, Hui nos mostra brevemente a reconstituição do pensamento cosmotécnico da China (ibidem, p. 41-46) e o quanto tal pensamento varia em relação ao modelo do norte global.

Basicamente, o autor mostra a força de dois discursos que podem ser resumidos em torno de chi e tao, sendo que o segundo possui uma forte amplitude cosmogônica. Aliás, usamos o termo ‘caminho’ no parágrafo acima inspirados justamente nesse termo (fazendo uma contraposição crítica), já que ele (tao) poderia ser traduzido como ‘caminho’ – mas de uma maneira ampliada, já que tao não é mera palavra ou conceito dentro do pensamento chinês (ibidem, p. 42).

Uma história no livro Vazio Perfeito, de Liezi (~V a.C.), ilustra essa visão, quando o rei Shun pergunta se é possível adquirir tao, ao que lhe é respondido que não possuímos sequer nosso próprio corpo, sendo impossível, portanto, adquirir tao (2020, p. 31). A implicação de tal parábola é determinante para pensarmos que o caminho, tal como vivenciado naquela cosmovisão, não pode ser escolhido ou possuído – ele só é aceito e vivido por meio de uma ação pela inação (os paradoxos são constitutivos para abarcarmos tal pensamento), uma harmonização com o “princípio do céu”, isto é, uma relação quase intuitiva, que praticamente independe da técnica ou da ferramenta.

O exemplo chinês é apenas um dentre outros que poderiam ser averiguados – e que instiga pela grande diferença em relação àquilo a que estamos acostumados, diferença que mal pode ser compreendida em palavras num idioma ocidental, que não foi construído cotejando os paradoxos. Haja vista, neste sentido, que muitas vezes tendemos aos binarismos e maniqueísmos, em vez de possuirmos uma percepção da complementaridade entre diferentes, o cerne do yin e yang que orienta o pensamento chinês.

Talvez a única forma de quebrar o “progresso” que impele o Anjo da História para o futuro e o impede de juntar os fragmentos seja o despertar de novas cosmopolíticas e cosmotécnicas, as quais existem, mas estão ocultadas por esta visão hegemônica preponderante que a todos varre e degrada. Aceitar tais cosmotécnicas seria não só diminuir a força da tempestade, mas permitir que das “ruínas sobre ruínas” se sobressaiam novas causalidades, que impedirão uma catástrofe única. Seria abrir caminho para múltiplas histórias, que talvez permitissem não um único anjo, mas uma falange.

4. Uma exortação

Nos Upanishads (1.II,4), o tempo é descrito como o resultado do coito entre a morte e a palavra. A exegese nos mostra que é só com a palavra que podemos dar sentido ao mundo (talvez até mesmo criá-lo); é só ao percebermos nossa finitude que podemos conceber um antes de nós e um depois de nós – e é aí que entra o tempo. Ora, a pandemia já nos trouxe muitas mortes… Precisamos falar sobre elas, dar-lhes significado crítico e revolucionário para que nos venha, então, um novo tempo – um tempo messiânico e revolucionário (ou revolucionário e messiânico), à la Benjamin, em que, redimidos, possamos citar nosso passado. Um tempo que rompa com este progresso extrativista e com as metafísicas universais de uma região. Só assim nossos mortos estarão em segurança.

5. Um fechamento

No já citado livro Nós, é dito que, assim como não há um último número (já que eles são infinitos), não há um último governo. Sempre haverá uma revolução que trará novo governo que será derrubado por nova revolução, ad infinitum. Nessa perspectiva, não há utopia possível, pois sempre haverá novas demandas, pessoas descontentes, marginalizadas e aquelas que trarão as novas ordens. Não há progresso certo, mas, ao menos, também não haverá uma distopia definitiva e um declínio inevitável – algo mudará, em algum momento, após alguma revolução. Cabe a nós que a mudança seja para melhor. Agora pode ser a hora de uma mudança.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Obras Escolhidas – vol. 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987

HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Editora UBU, 2020

LIEZI. Vazio Perfeito – edição bilíngue. São Paulo: Mantra, 2020

UPANISADAS – Os doze textos fundamentais. São Paulo: Mantra, 2020

WALLACE, Rob. Planeta Fazenda. Le Monde Diplomatique Brasil, 11/02/2021, disponível em: <https://diplomatique.org.br/planeta-fazenda/>.