Tecnosistema: tecnologia e política

por Henrique Parra

A Pandemia Covid19 provoca um corte radical em nosso cotidiano. Nessa situação de brusca interrupção das rotinas e diante das novas demandas de organização da vida, deparamo-nos com muitas coisas, habitos e dispositivos que estavam naturalizados e invisibilizados em nosso cotidiano. Por lado, vive-se uma tremenda dificuldade em se realizar algumas tarefas e ao mesmo existem novas rotinas que se instalaram com rapida velocidade e força de adaptação. Em ambas direções, interessa-nos evidenciar e problematizar a maneira como os arranjos tecnológicos participam dessas reconfigurações, e como a pandemia contribui para desnaturalizar a presença e o modos de funcionamento de algumas mediações tecnológicas em nossa vida.

Sinteticamente, o objetivo dessa aula é que possamos ter contato com algumas abordagens e conceitos sobre o fenômeno tecnológico de maneira a ampliar nosso repertório de análise dos problemas/temas com os quais estamos envolvidos. Como reconhecer os aspectos sociais, antropológicos e politicos dos modos de composição técnica? Como incorporar em nosso análise a agência dos objetos, artefatos, técnicas? Em suma, como pensar com a técnica/tecnologia e superarmos os habituais dualismos cultura-técnica, humano-não-humano.

Destacarei alguns pontos relevantes para a discussão:

*Dimensão contextual, situada e histórica de cada tecnologia, portanto como evitar generalizações, universalizações ou mesmo o essencialismo tecnológico. Falar de tecnologia é sempre falar de alguma tecnologia específica com uma história de desenvolvimento técnico situado, o resultado das configurações de um campo de forças sociais, mas também como portadora de indeterminações e significações.

*Abordagens e situações tecnodeterministas, quando é atribuída a uma tecnologia o poder de orientar ou inscrever valores, sentidos e racionalidades específicas no mundo social.

*Abordagens construtivistas, onde a tecnologia é analisada como o efeito de escolhas e disputas sociopolíticas e culturais entre distintos atores que moldam o desenho e o funcionamento técnico.

*Abordagens que destacam a imanência política de alguns artefatos e tecnologias, cujo desenho, função e efeitos são indissociáveis da distribuição assimétrica de poder e recursos na sociedade.

*Abordagens híbridas que fornecem recursos teóricos para a combinação de distintas perspectivas, conforme a característica e situação do fenômeno tecnológico.

Seguindo a investigação aberta em nosso ultimo encontro, há duas perguntas lançadas por Rob Wallace – Pandemia e Agronegócio – que nos conectam diretamente com os problemas centrais dos textos da aula dessa semana:

  1. Como foi possível que tenhamos deixado a coisa toda chegar nesse ponto? Como não percebemos a construção desse intrincado arranjo sociotécnico que conecta o que colocamos em nossas mesas pra comer com o capitalismo financeirizado e o sistema transnacional de produção de alimentos, responsáveis pela criação de condições favoráveis ao desenvolvimento de patógenos com potencial pandêmico?
  2. Como podemos sair desse problema e por que é tão difícil transformar essa longa cadeia produtiva, as formas de consumo alimentar e as diversas tecnologias adotadas nessa produção?

A essas duas perguntas, poderíamos adicionar uma terceira:

  1. Como explicar que esse modelo de produção alimentar seja adotado por tantos países e governos de diferentes culturas, e seja promovido por partidos de campos ideológicos distintos? Por que afinal o agronegócio se apresenta como a forma tecnológica “mais eficiente” de se produzir alimentos?

Evidentemente, não pretendemos responder ou examinar todas as dimensões envolvidas essas perguntas. Tampouco vamos tratar de problemas específicos relacionados ao agronegócio. Mas elas servem de disparadoras da nossa reflexão sobre aspectos sociotécnicos do nosso modo de vida que se evidenciaram com a Pandemia Covid19. Assim, partimos do “problema tecnológico” presente na discussão sobre Agronegócio e Pandemia, para transborda-lo para outras dimensões da vida social e também dos problemas e temas de investigação de cada participante do curso.

O problema de fundo interroga a relação entre as condições de desenvolvimento tecnológico, uso e os efeitos da mediação tecnológica nos diversos campos da vida e as condições de organização da vida social e política. Todos os 3 autores indicados para a aula de hoje apontam para as tensões entre a qualidade da vida democrática e o crescente domínio de tecnologias cujo modo de funcionamento são promotoras de formas específicas de organização sociopolítica.

Feenberg desenvolve uma teoria crítica da tecnologia (também denominada Construtivismo Crítico) para investigar a formação social e histórica do Tecnosistema e a da Tecnocracia. Sua análise do fenômeno tecnológico mistura aspectos da teoria crítica da escola de Frankfurt, abordagens do campo do STS (estudos sociais da ciência e tecnologia) e da ANT, com abordagens teóricas inspiradas em 3 linhagens: Marx, Foucault e Simondon.

Diante do acontecimento pandêmico confrontamo-nos, por exemplo, com a dificuldade de modificar algumas rotinas que estão construidas numa relação de forte determinação de alguns arranjos sociotécnicos: basta pensar na maneira como o funcionamento de nossas casas, as escolas e o enredamento da educação com o funcionamento de nossas rotinas, o cuidado de pessoas próximas, as formas de organização do trabalho, nosso acesso a bens de consumo e serviços, os sistemas de saúde, as tecnologias de comunicação, etc. Qual nossa agência e capacidade de mudança sobre alguns desses arranjos? Como eles moldam as condições de nossa existência?

A forma de distribuição desigual do poder e da agência humana nas composições construídas junto a esses grandes arranjos se materializa como expressão da Tecnocracia. Ela resulta de uma seleção sistemática e de longa duração de alternativas tecnológicas que favorecem um controle hierarquico. A tese tecnocrática é apresentada por Feenberg como o crescente expansão e uso da delegação técnica para consolidar e legitimar um sistema de expansão do controle hierarquico.

Não é difícil compreender que as escolhas tecnológicas (no agronegócio, na industria, na comunicação…) refletem o resultado de um campo de forças políticas. Aqueles com maior poder farão escolhas tecnológicas que favorecem determinadas configurações de mundo. Mas “a tecnologia não é somente a criação de algum propósito social pré-definido; ela é um ambiente dentro do qual um modo de vida é elaborado.”

O desenho das máquinas, ou a maneira como o Código Técnico é definido, reflete os fatores sociais operantes em uma racionalidade predominante. Biossegurança, protocolos, indicadores…a definição do que é eficiência, do que é segurança, são todos elementos que resultam de processos de racionalização dentro de domínios específicos. Mas, como os autores problematizam, o que está em questão é exatamente as definições e os apagamentos de quais são os sentidos de eficiência e racionalidade em operação.

A constitução desse pano de fundo que define de maneira “natural” os critérios que estabelecem o que é “ser eficiente” ou “ser racional” dá forma ao que Feenberg denomina hegemonia de um horizonte tecnológico.

Para Feenberg, a hegemonia refere-se a uma “forma de dominação tão profundamente arraigada na vida social que parece natural a esses a quem domina”; o horizonte tecnológico “se refere a suposições genéricas e culturais que formam um pano de fundo inquestionado para qualquer aspecto da vida”. A tecnologia, uma vez introduzida, “oferece uma validação material do horizonte cultural para o qual foi pré-formada.[…] A racionalidade funcional aparentemente neutra alinhada está em defesa de uma hegemonia.

Nessa direção, as formas de exercício do poder, convergem com a análise proposta por Foucault: “as formas modernas de opressão não estão tão baseadas em falsas ideologias quanto em técnicas efetivas “codificadas’ pela hegemonia dominante para reproduzir o sistema. Enquanto a escolha permanece escondida, a imagem determinística de uma ordem social justificada tecnicamente se projeta. A efetividade legitimadora da tecnologia depende da inconsciência do horizonte político-cultural em que ela foi concebida”.

Podemos assim, pensar o desenvolvimento tecnológico como formas de produção de mundos. Por isso, toda tecnologia reflete também uma cosmotécnica e uma cosmopolítica. Nesse sentido, a tecnologia não é algo externo à sociedade, sobre a qual ela impacta. Podemos então pensa-las como formas de vida.

Nos dizeres de Langdon Winner:

“As coisas que nós chamamos tecnologias são formas de construir ordem em nosso mundo. Muitos dispositivos ou sistemas técnicos importantes na vida quotidiana contém diversas possibilidades de ordenar a atividade humana. Conscientemente ou inconscientemente, deliberadamente ou inadvertidamente, as sociedades escolhem tecnologias que influenciam, por um longo tempo, como as pessoas vão trabalhar, se comunicar, viajar, consumir, e assim por diante.
No processo pelo qual as decisões estruturantes são feitas, diferentes pessoas estão diferentemente situadas e possuem diferentes graus de poder assim como diferentes níveis de consciência.
De longe, a maior latitude de escolha existe no primeiro momento em que uma técnica, sistema ou instrumento particular é introduzido. Uma vez que os compromissos iniciais são assumidos, as escolhas tendem a se tornar fortemente fixadas no equipamento material, no investimento econômico e no hábito social, e assim, a flexibilidade original desaparece para qualquer propósito prático. Neste sentido, inovações tecnológicas são similares a atos legislativos ou ações políticas básicas que estabelecem uma estrutura de ordem pública que pode durar por muitas gerações. Por esta razão, a mesma atenção cuidadosa que é dada às regras, papéis e relações da política devem também ser dadas a coisas tais como a construção de rodovias, a criação de redes de televisão, e a customização de aspectos aparentemente insignificantes em novas máquinas. As questões que dividem ou juntam pessoas na sociedade são resolvidas não apenas nas instituições e práticas da política como tal, mas também, e menos obviamente, em arranjos tangíveis de aço e concreto, fios e semi-condutores, porcas e parafusos.”

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Notas da aula 3 – Tecnosistema: tecnologia e política

Os textos e demais referências utilizadas estão disponíveis neste link: https://pt.wikiversity.org/wiki/Tecnopol%C3%ADticas:_ci%C3%AAncia_e_tecnologia_na_constru%C3%A7%C3%A3o_de_mundos#Aula_3:_6_de_abril:_Tecnosistema:_tecnologia_e_pol%C3%ADtica

Durante o curso, pretendemos compartilhar pequenos ensaios escritos pelos participantes. O curso segue aberto à participação de ouvintes.