Fizemos um experimento. Um dos desafios que temos enfrentado em Madrid é a criação de uma rede de sociabilidade infantil para nossa filhota. No pequeno prédio em que moramos há poucas crianças, não conhecemos os vizinhos e após dois meses de residência tivemos pouco contato com os demais moradores. Assim como em São Paulo, a vida em apartamentos num edifício de uma grande cidade não produz diretamente relações de vizinhança.
Noutro post [Pequenas infraestruturas da vida em comum] contei como à noite, na hora de colocar a Mai para dormir, podíamos ouvir bem baixinho uma outra família contando histórias para seu filho (assim como nós). Falando com a Mai sugeri que podíamos fazer uma carta ou algo do gênero pra colocá-la em contato com aquela outra criança. Mas como fazer contato, sem saber ao certo os protocolos ou as sutilezas da cultura local?
Inspirando-me no projeto Escalera (tema deste post), decidi fazer um pequeno cartaz para coloca-lo na escada de entrada do prédio, bem ao lado das caixas de correio.
O resultado foi muito animador. Alguns dias depois fomos procurados pelas duas famílias que tem crianças no prédio e demos início a uma aproximação gradual entre elas. Mai ficou mais feliz, ela agora conhece seu vizinho! Esta simples experiência me faz pensar em muitas coisas.
A vida em apartamento numa grande cidade é um vetor importante no desenho de nossas vidas. Muito se fala sobre a maneira como a vida organizada por este tipo de arquitetura influencia nossas rotinas, nossos vínculos sociais e maneira como nos relacionamos com a rua, o bairro e a própria cidade. Em suma, a vida em apartamentos é parte do fenômeno urbano. Ao mesmo tempo, é interessante observar a diversidade encontrada nas relações de vizinhança em diferentes condomínios de edifícios. Se por um lado ouvimos que as reuniões de condomínio e brigas entre vizinhos são um tema frequente de aborrecimento, por outro, conhecemos pessoas que moram em edifícios em que as relações de convivência são mais agradáveis, onde existe algum tipo de apoio mútuo, solidariedade e alegria em partilhar o mesmo espaço. Assim, se a infraestrutura arquitetônica é um importante fator de influência no desenho de nossas relações sociais, ele está longe de ser um vetor exclusivo na determinação de nossas relações. Há muitas coisas em jogo, e a investigação desses vários fatores é um bom exemplo de um problema dos arranjos sociotécnicos.
É justamente nesta brecha, nessa margem de indeterminação, que o projeto Escalera se insere como uma intervenção micropolítica que almeja disparar outros processos instituintes da forma e conteúdo de nossas relações sociais urbanas.
O projeto nasce de um incômodo partilhado por muitas pessoas. A pergunta disparadora do projeto é: “A vida é um problema comum. Podemos resolvê-lo em comunidade?”. Essa sensação, que ressoa em muitos de nós, manifesta um grave problema de fundo relativo à perda de sentido da vida em comum, compartilhada. O sentimento de isolamento, as dificuldades de sustentar a vida cotidiana de forma independente sem o pequeno apoio de pessoas próximas, a intensificação de problemas de saúde mental e física, entre outros, são sintomas de um comum que foi perdido, destruído e expropriado pelo nosso modo de vida contemporâneo.
Só nos damos conta de que existe uma matéria muito sutil, um tecido que sustenta nossas vidas em seus mínimos detalhes, quando nos confrontamos com sua perda. O projeto Escalera atua para tornar visível as fagulhas que compõem este comum, que só existe junto à uma comunidade que o sustenta. Neste sentido, na acepção em que estou investigando, o projeto Escalera é um verdadeiro laboratório do procomún.
Sua ação é simples e complexa ao mesmo tempo. O projeto fornece um kit de adesivos e cartazes customizados para que um (ou mais) moradores do prédio, interessado em implantar o projeto em seu edifício, possa colar pequenas mensagens em locais visíveis. As mensagens sinalizam pedidos simples ou ofertas de apoio gratuito: coisas como “preciso de alguém me ajude na escada a carregar as compras de supermercado”, ou “me ofereço para dar água para as plantas”, ou “gosto de tomar café a tarde em companhia pra bater um papo”, entre várias outras mensagens.
Dito de outra forma, sua realização envolve uma pesquisa para construir um protótipo material, um dispositivo tecnopolítico que ajude a ativar certos modos de relação, e não outros. Rosa Jiménez me relatou em detalhes os desafios da investigação: como iniciar a sensibilização numa comunidade de vizinhos, que mensagens utilizar, como fazer a mediação e ativação da comunidade, etc. O fundamental está nos detalhes: cada mensagem utilizada diz muita coisa para além daquilo que está escrito.
Em sua versão inicial, Rosa lançou o projeto no Facebook para tentar alcançar um pequeno grupo, cerca de 5 edifícios que pudessem colaborar para um piloto. Porém, a procura foi tamanha que a implantação do projeto ocorreu com 30 edificios. Em cada um deles, o projeto foi procurado/acionado por uma moradora (a maior parte eram mulheres) implicadas em transformar a vida em sua comunidade. Mais uma vez, os dados indicam como são principalmente as mulheres que produzem e reproduzem o mundo comum.
Mas Rosa também foi procurada por empresas imobiliárias, de segurança ou de publicidade, que viram no projeto uma importante estratégia de ativação (e neste caso de expropriação) de um recurso. Sabiamente, a Escalera soube criar estratégias para evitar usos indesejados do projeto. Esta tensão é reveladora da maneira como o “comum” é tanto aquilo que alimenta e dá suporte à nossa vida ordinária, como também pode ser convertido em recurso produtivo e monetizável. No capitalismo biopolítico contemporâneo o “comum” é um dos seus principais insumos.
Neste sentido, observamos como pequenas experiências de produção do comum urbano, são espaços de resistência para a criação de outros modos de vida possíveis na cidade. No Projeto Escalera encontrei um belo exemplo de pesquisa-ação e análise sociotécnica realizado através de um “laboratório” que visava ativar a própria comunidade que sustenta esse comum que está ameaçado por todos os lados.
As dinâmicas implicadas na produção de vínculos sociais, nas redes de cuidado compartilhado, nas relações de solidariedade e amizade, que transformam nossas redes de vizinhança tem impulsionado o projeto Escalera para outras escalas e perguntas. Como através da construção de relações de vizinhança podemos fazer bairro? E será que com uma vida melhor de bairro, podemos fazer cidade?
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Mais sobre o projeto Escalera:
website: http://www.proyectolaescalera.org
facebook: https://www.facebook.com/proyectolaescalera/
Video: https://www.youtube.com/watch?v=5UlDXH-o4_o
Explicação Kit: como fazer http://www.proyectolaescalera.org/2017/01/26/como-se-hace-una-escalera/
PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa