Política do protótipo: o caminho se faz caminhando

 

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Acho interessante a maneira como, aqui na Espanha, a palavra “protótipo” está muito presente em diferentes iniciativas de coletivos ativistas (ambientais, urbanistas, hackers, culturais etc) e como este termo é utilizado por instituições públicas e não-governamentais. Investigar e problematizar a genealogia desse termo daria uma ótima tese (lançada a sugestão). Gosto da idéia de protótipo por algumas razões, por isso comecei a utilizá-la há algum tempo para descrever algumas práticas em que estou envolvido.

Na minha experiência, se a memória estiver correta, comecei a escutar esse termo nos primeiros anos do século XXI (2003…2005?), em grupos da então chamada “cultura digital” (bons tempos com midiatática, submidialogia, metareciclagem, midiaindependente…). Naquele contexto, acho que a palavra vinha mesmo da turma que estava mais imersa na cultura de desenvolvedores de softwares (seja por experiência profissional ou de formação). Ali, a noção de protótipo trazia vínculos de origem com a criação de produtos ou serviços – empresarial, corporativa ou mesmo de programadores entusiastas do software livre – que deveriam ser colocados rapidamente em circulação para que pudessem ser testados e aperfeiçoados.

Ao invés de ficar desenvolvendo um produto até sua conclusão, a ideia do protótipo valorizava o inacabado e a importância da abertura para que se receber rapidamente novos inputs e melhorias, dando relevância aos modos de uso e apropriação para experimentar suas possíveis trajetórias e adequações. Em suma, ele reúne elementos que reconhecem o caráter contextual de qualquer criação. Ao mesmo tempo, a maneira como o ambiente, as infraestruturas e as relações sociais participam do arranjo que surge com o protótipo em uso é parte indissociável do próprio protótipo. Isso que parece um pequeno detalhe faz muita diferença quando exploramos algumas das implicações políticas desta concepção. Talvez por isso, o termo tenha deslizado tão facilmente para outros contextos. Farei um pequeno comentário sobre os possíveis sentidos da noção de protótipo em dois campos: (1) produção de conhecimento; (2) prática política.

(1) Prototipar como forma de conhecer

Quando a ideia de protótipo refere-se a uma prática de conhecer surgem coisas interessantes. Em primeiro lugar, significa levar a sério o fato de que todo processo de produção de conhecimento é também um ato de intervenção no mundo. Uma pesquisa que se realiza através da criação de um protótipo deve incorporar na sua análise os efeitos e as consequências do que ela está produzindo. É também uma forma de conhecer baseada na indissociabilidade teoria e prática. A noção de experiência ganha força: conheço algo que me acontece; sou partícipe e implicado com este processo de conhecer.

Ao prototipar colocamos em movimento o problema que está sob investigação. Ao fazer isso, criam-se novos problemas pelos quais somos responsáveis. Isso é interessante porque a dimensão ética de qualquer pesquisa torna-se ainda mais visível e urgente, obrigando os pesquisadores a serem mais humildes, cautelosos e lentos. Dessa forma, uma política do cuidado inscreve-se de maneira imanente ao processo de investigação e prototipagem.

Mas a noção de protótipo também pode indicar uma outra topografia entre diferentes atores envolvidos num processo de investigação. O protótipo, nos casos que acompanhamos, baseiam-se em princípios de abertura e colaboração. Isso significa que distintos saberes (indivíduos/grupos) podem ser incorporados na produção e apropriação do protótipo. Produtores, pesquisadores, usuários, leigos e experts participam de formas distintas da trajetória do protótipo. A depender das condições de participação dos distintos públicos o protótipo terá características muito diferentes.
Promover as condições de sua contínua apropriação e modificações implica portanto num outro regime de propriedade sobre o conhecimento produzido e sobre o processo: deve-se tratá-lo como um comum (commons). Por fim, essa abertura implica no reconhecimento do caráter sempre inacabado e transitório de todo processo de investigação e aprendizado.

(2) Protótipo e ação política

Quando a noção de protótipo é mobilizada por coletivos ativistas ela pode indicar outras formas de ação política, que também encontramos no repertório de alguns movimentos sociais. A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja. Pode-se estabelecer aí uma relação com o conceito de política “pré-figurativa” tão presente em alguns movimentos contra-culturais (anos 60-70s) e nos movimentos alter-anti-globalização (2000’s).

É portanto uma política do cotidiano que busca introduzir modificações nas formas de vida existentes. Quando ativistas ambientais criam, por exemplo, uma ação prototípica de uma alternativa de transporte nas cidades, ela deve ser minimamente capaz de se efetivar no mundo atual. Ou seja, trata-se de uma ação que reconhece as forças em jogo e objetiva criar uma diferença capaz de resistir e persistir. Em alguns casos, a mera percepção da possibilidade de sua efetivação gera efeitos de modificação no horizonte de expectativas. Noutros casos, a construção de um protótipo pode estar orientada para modificar as condições do ambiente em que sua produção/reprodução ocorre. Novamente, essas condições “ambientais” ou contextuais, são consideradas parte deste protótipo político, indicando portanto a substituição da oposição meios X fins, pela necessária combinação dos meios e fins. Por isso, essa noção de protótipo pode ser portadora de uma política imanente ou de uma política pelo “meio” (pelo meio, par le millieu, mesopolítica, entre outros termos).

A criação de protótipos nos “laboratórios cidadãos” é traduzida por Antonio Lafuente numa boa expressão: do protesto à proposta. Ou seja, ao se engajarem na produção de protótipos esses coletivos afirmam e experimentam positivamente a possibilidade de construção situada (contextualizada, implicada, parcial) de alternativas concretas para aquilo que reivindicam. Ao fazerem isso dão a ver de maneira mais clara o comum ameaçado, apropriado, e os mecanismos de reprodução social em sua micro e macro-política.

A criação de um protótipo, no contexto de uma intervenção ativista, também indica a valorização de ações práticas, em detrimento das armadilhas das escolhas excessivamente ideologizados que se descolam das condições de ação no presente. Evidentemente, toda prática é portadora de princípios e valores, mas quando deslocamos o foco para a construção de uma ação prática somos obrigados a criar soluções que tornem aquela ação possível. É portanto, um outro estado de presença corporal, onde aprendemos a pensar e praticar uma política sensível com o corpo que temos no mundo que habitamos. Em suma, indica-se uma outra concepção de mudança social.

 

Algumas referências:
*Master em Comunicação, Cultura e Cidadania Digital: http://cccd.es/wp/
*Prototype: coletivo de investigação e intervenção, urbanismo e antropologia: http://www.prototyping.es/
*Diversos laboratórios realizados no âmbito do Medialab-Prado http://medialab-prado.es/
*Inteligencia Colectiva: http://www.inteligenciascolectivas.org/category/prototyping/
*Red de Huertos Comunitarios de Madrid: https://redhuertosurbanosmadrid.wordpress.com/2014/06/03/taller-de-autoconstruccion-de-cocinas-solares-en-cantarranas/
*Exemplo de laboratório cidadão http://medialab-prado.es/article/proyectos-madrid-escucha
*Hacklab da Ocupa Ingobernable: https://hacklab.ingobernable.net/

Veja o artigo: 2016. Corsín Jiménez, Alberto & Adolfo Estalella. ‘Ethnography: a prototype.’ Ethnos, online first, DOI: 10.1080/00141844.2015.1133688. Special Issue, Obstruction and Intervention, edited by Rane Willerslev, Lotte Meinert and George Marcus. Pre-print available here

PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa